quarta-feira, 15 de abril de 2009

A DISPUTA PELA TERRA SANTA


Silas Andrade






No outono de 1095, os habitantes de Jerusalém não pareciam ter motivos para olhar o futuro com excessiva preocupação. Muçulmanos, judeus e cristãos viviam em relativa harmonia. É verdade que a Palestina tinha sido atropelada por potências muçulmanas rivais durante décadas e que a própria Jerusalém mudara de mãos três vezes desde 1060: só os mais velhos podiam lembrar-se de um governo estável. Mas a cidade estava bem guarnecida, em um local com defesas naturais e altamente fortificado. Ninguém acreditaria que, a 3 mil quilômetros de distância, uma eminência eclesiástica estava preparando um discurso que provocaria um súbito massacre na cidade e que por séculos mandaria multidões armadas em direção a Jerusalém. A era das Cruzadas estava para explodir sobre o desavisado Oriente.

Embora ignorasse seu destino, a gente de Jerusalém conhecia muito bem as paixões que a cidade despertava. Para os judeus, era Sião, a cidade de Deus e o lugar onde o rei Salomão construíra seu grande templo. Os muçulmanos associavam-na com os profetas anteriores a Maomé, fundador do islamismo, e consideravam-na como sua terceira cidade santa, depois de Meca e Medina. Os cristãos reverenciavam Jerusalém como a cidade onde Cristo morrera e na qual, acreditavam, ele ressuscitara. Nos mapas europeus, ela aparecia como o centro do mundo. Desde o século IV, quando o cristianismo se tornara a religião oficial do Império Romano e o martírio dos cristãos cessara, os fanáticos buscavam alguma outra expressão extrema da fé. Encontraram-na na peregrinação, sobretudo a Jerusalém. Lá estava o que se tornou o santuário mais sagrado da cristandade: a Igreja do Santo Sepulcro, construída pelo imperador Constantino no século IV, supostamente sobre o túmulo de Cristo. Os muçulmanos capturaram Jerusalém em 638 e continuaram permitindo o acesso de judeus e cristãos à Cidade Santa e seus santuários. Devotos, penitentes ou curiosos das três religiões partiam de três continentes para conhecê-Ia.

O movimento das Cruzadas foi inspirado pela idéia de peregrinação. Com efeito, a palavra cruzada só passou a ser usada no século XIII; antes disso, falava-se em "expedição de Deus", ou "negócio de Cristo”, ou simplesmente “a peregrinação”.

Mas a Cruzada concebida em 1095 não era uma peregrinação comum. Pela força militar, ela transferiria das mãos muçulmanas para as cristãs não só Jerusalém, mas também uma faixa de mil quilômetros da costa da Síria, expandindo os domínios da Igreja Católica que, graças aos esforços de missionários e a conquistas, já contava com a fidelidade da Sicília até a Escandinávia. Agora, a autoridade do papa de Roma estendia-se até um posto avançado no Oriente.


Os povoadores cristãos que acompanharam os cruzados não tinham, porém, os efetivos necessários à sustentação de suas conquistas. Edessa, o mais exposto dos bolsões cristãos, caiu para os muçulmanos em 1144, e a Segunda Cruzada não conseguiu recapturá-lo. Jerusalém foi perdida em 1187, e a Terceira Cruzada não conseguiu reconquistá-Ia. A Quarta Cruzada, de 1204, planejada para atacar Jerusalém, foi desviada para o saque de Constantinopla, a capital cristã do Império Bizantino.


Embora as Cruzadas ao Oriente continuassem com fervor crescente durante o século XIII, os cristãos jamais recuperariam tudo que haviam perdido.

As Cruzadas foram os primeiros empreendimentos em que as nações da Europa cooperaram em grande escala. Não por acaso, o objetivo que as uniu inicialmente foi servir a Deus: o ardor religioso permeava a Europa do século XII, e a idéia de conquistar a Terra Santa atiçou a imaginação e absorveu as energias de gerações de guerreiros europeus. Do lado muçulmano, as Cruzadas pareceram eventos menos importantes; os estados cristãos fundados pela Primeira Cruzada eram pequenos, e sua presença apenas um dos fatores de uma cena política complexa. Mas o ataque em nome de uma fé alienígena ajudou de fato os líderes islâmicos a impor a unidade e a ortodoxia religiosa numa região dividida.

Em termos seculares, quem ganhou mais com as Cruzadas foram as cidades comerciais da Itália, sobretudo Veneza, Os portos de Bizâncio e do Levante eram escalas decisivas no comércio entre a Europa e a Ásia, e a presença cristã no Oriente estimulou essa atividade. O mundo estava se tornando menor.

O início da aventura da Europa ocidental na Terra Santa não podia ter ocorrido em melhor ocasião. A aurora do século XII encontrou o mundo muçulmano dividido.
Nas décadas que sucederam a morte do profeta Maomé em 632, seus seguidores tinham saído dos desertos arenosos da Arábia, num impulso de conquistar e converter. No século X, o domínio islâmico já se estendia da Espanha, no ocidente, até além do rio Indo, no oriente, e do mar Cáspio, no norte, ao Egito, no sul. Em teoria, o líder espiritual e político de todos os povos islâmicos era o califa - literalmente, “o sucessor”. Mas duas dinastias rivais consideravam-se legítimas sucessoras de Maomé: os abássidas, de Bagdá, e os fatímidas, do Cairo. Os abássidas representavam a fé sunita - "legal" - da maioria, que traçava sua ascendência até Abu Bakr, amigo do Profeta. Os fatímidas, que alegavam descenderem de Fátima, filha de Maomé, eram os líderes do xiismo, que, ao longo dos séculos, absorvera idéias de outras crenças. Do zoroastrismo persa ou do cristianismo oriental tinham adotado a crença numa linhagem sagrada de redentores - para os xiitas, essa linhagem era a do marido de Fátima, Ali - que ficariam escondidos na obscuridade por gerações antes de serem revelados. Outra idéia adotada por alguns xiitas era a de que o assassinato de i infiéis poderia ser um dever religioso.

O califado abássida de Bagdá atingira seu apogeu no século IX; o fatímida do Cairo, no século X. No século XI, ambas as dinastias já tinham renunciado ao verdadeiro poder em seus domínios. Em teoria, os abássidas dominavam sobre a grande faixa de terra entre o Mediterrâneo e a índia. Mas eles tinham perdido a iniciativa para os turcos seljúcidas, cavaleiros excelentes e guerreiros valorosos que antes viviam como nômades nas estepes da Ásia Central. A partir de sua atuação como mercenários nas fímbrias do território muçulmano, os seljúcidas abriram caminho para, em 1059, dominar a maioria das terras sunitas. Apresentados havia pouco ao islamismo sunita, os seljúcidas possuíam todo o fervor dos novos conversos e tinham grande respeito pelo califa, que, no entanto, em assuntos políticos, se tornara um fantoche obediente do sultão, o líder guerreiro dos seljúcidas que pretendia conquistar todos os xiitas e infiéis.
O rico reino fatímida do Egito também caíra sob controle militar. Como o entusiasmo guerreiro dos nativos era escasso, o exército contava com largo número de escravos de origens diversas. Tal como outras sociedades islâmicas, os egípcios compravam meninos de tribos pagãs, ensinavam-lhes a religião e a arte da guerra e dispunham deles como tropa de choque. No Egito, as forças escravas incluíam lanceiros turcos e sudaneses, lutando ao lado de cavaleiros berberes das montanhas do norte da África: uma mistura explosiva. Em 1060, uma disputa militar desencadeou dezessete anos de guerra civil entre os componentes do exército fatímida, complicada por rebeliões entre os árabes nativos do Egito, intervenções dos seljúcidas e ataques dos beduínos do deserto do Sinai. Quando a paz - ou a exaustão - chegou, o Egito estava nas mãos de uma dinastia de muçulmanos armênios de origens escravas que tinham massacrado os outros contendores. O califa fatímida permanecia, mas os armênios detinham o título de vizir e o verdadeiro poder.

A Síria da época estendia-se por onde hoje se situam Síria, Jordânia, Líbano e Israel. Disputada havia séculos por abássidas e fatímidas, era uma nação montanhosa, definida no comprimento por dois espinhaços; a oeste, bordejava o Mediterrâneo e, a leste, perdia-se nas areias do deserto. Mas o largo litoral e o vale entre as duas cadeias.de montanhas eram férteis, e nas cidades prosperavam centros comerciais. O oásis de Damasco, alimentado pelas águas do degelo das montanhas, ficava na junção entre as rotas comerciais leste-oeste e norte-sul. A próxima parada importante das caravanas que iam para o norte era a bem fortificada cidade de Alepo, com sua cidadela erguendo-se sobre paredes escarpadas. Pelos portos de Antióquia, Trípoli, Beirute, Tiro, Acre e Jafa passavam as exportações locais, tais como açúcar e algodão, ao mesmo tempo que se estabelecia a participação no lucrativo comércio de especiarias do Extremo Oriente.

Entre os habitantes da Síria predominavam os de língua arábica e origem mista nativa-árabe, mas havia também muitos judeus, cristãos seguidores do rito ortodoxo grego e cristãos de outras seitas cuja visão sobre a natureza de Cristo diferia da dos católicos e ortodoxos. Essas igrejas nativas, consideradas heréticas por Roma e Bizâncio, abrangiam armênios, maronitas - que consideravam como seu fundador são Maron, do século V - e jacobitas, nome que vinha do pregador do século VI Jacob Baradeus. Sendo “povos do livro” - isto é, gente com uma escritura -, os cristãos eram tolerados pelos muçulmanos, embora tivessem de pagar impostos altos, não pudessem andar a cavalo nem carregar armas e fossem obrigados a mostrar uma atitude de respeito em relação ao islã. Fora das áreas povoadas, no deserto da Síria, vagavam tribos árabes nômades.

A guerra civil no Egito e a intervenção dos seljúcidas lançara a Síria no caos; as cidades eram dominadas, sem padrão discernível, por comandantes seljúcidas, famílias árabes locais, príncipes armênios, ex-governadores fatímidas que tinham se independentizado e aventureiros vários. Algumas poucas cidadelas da costa do Mediterrâneo continuavam fiéis ao Egito. Jerusalém, após mudar de mãos três vezes, acabou como possessão seljúcida. Nada desse tumulto destinava-se particularmente a interromper as peregrinações cristãs nas décadas anteriores ao início das Cruzadas, mas era inevitável que os perigos aumentassem para os peregrinos.

Em meio a seu envolvimento na Síria e no Egito, os seljúcidas conseguiram dar um golpe mortal na outra grande potência da região: o Império Bizantino. Em 1071, o imperador de Bizâncio confrontou-se com eles em Manzikert, na Armênia, junto às fronteiras orientais do império. O exército bizantino foi inapelavelmente batido e seu imperador capturado. O amplo território da Anatólia, no centro da Ásia Menor, ficou aberto aos ataques dos seljúcidas e de outra tribo de turcos, selvagem e fanaticamente muçulmana, chamada de Danishmend, nome de seu líder. Não demorou muito e uma dinastia seljúcida fundava um reino na Ásia Menor - o sultanato de Rum - que se declarou independente dos governantes seljúcidas de Bagdá.

A grande cidade de Constantinopla parecia terrivelmente ameaçada pela nova potência muçulmana. E os peregrinos que iam para Jerusalém defrontavam-se com perigos ainda maiores, especialmente os que faziam a jornada por terra, que tinham agora de cruzar uma Anatólia devastada e hostil antes mesmo de chegar à Síria.

A perda da Anatólia caiu como um golpe terrível sobre uma Bizâncio já enfraquecida. A sucessora da metade oriental do Império Romano mantinha-se imensa mesmo após Manzikert: a Grécia, parte dos Balcãs e da Ásia Menor ainda estavam em suas mãos. Na Europa ocidental, Bizâncio evocava imagens de grande riqueza e luxo. Mas o esplendor de suas igrejas, a arte de suas obras em metal e de seus tecidos disfarçavam as conseqüências debilitadoras de uma série de imperadores fracos, incapazes de manter a máquina militar. O exército dependia quase inteiramente de mercenários estrangeiros. Cercada por vizinhos muçulmanos, Bizâncio não possuía amigos leais no Ocidente cristão. A Igreja Ortodoxa, controlada de Constantinopla, e a Igreja Católica de Roma tinham se distanciado havia séculos, brigando por doutrina, competindo por conversos, e uma refutando a pretensão de primazia da outra. Em 1054, uma disputa sobre as palavras do Credo provocou um anátema recíproco e acabaria levando ao cisma aberto. Mas, após Manzikert, a situação ficara tão séria que os bizantinos pediram ajuda ao papa Gregório VII.

Gregório, porém, estava envolvido em seus próprios problemas e não pôde mandar tropas. Contra as probabilidades, os bizantinos sobreviveram sem ajuda. Na pessoa do imperador Aleixo, foram abençoados com o político mais sutil da época, que mantinha seus vizinhos inimigos em estado de discórdia e que, através de uma mistura de blefes, subornos, traições e forças direcionadas com habilidade, conseguiu restaurar as fronteiras sempre que possível. Ele percebeu uma chance quando o último sultão seljúcida indiscutível de Bagdá morreu, deixando muitos filhos e uma guerra civil que poderia abalar o sultanato de Rum. Em 1095, Aleixo escreveu amigavelmente ao papa Urbano II pedindo novamente ajuda à cristandade do Ocidente. Aleixo supostamente esperava um contingente de soldados profissionais que serviria a ele por dinheiro, recuperando alguns dos territórios perdidos para os muçulmanos. É provável que a tomada de Jerusalém não estivesse em sua mente, pois fazia muitos séculos que Bizâncio não controlava mais a Cidade Santa.

Em Roma, o pedido de Aleixo foi visto de forma muito diferente. O papa Urbano ouvira contar que os cristãos da Síria estavam sofrendo muito com os muçulmanos em guerra e desejava socorrê-los. Preocupava-se também em evitar os perigos que, segundo se dizia, os peregrinos do Ocidente enfrentavam naquelas regiões turbulentas. Além disso, o papa - que vinha de uma família nobre francesa - não precisava que lhe contassem sobre o mal que cristãos ocidentais belicosos causavam uns aos outros diariamente.
Parecia a Urbano que, se fosse possível persuadir os cavaleiros do Ocidente a dirigir o seu vigor guerreiro contra o Oriente, então haveria paz em casa. Por fim, sonhava que, com Bizâncio dependente das armas ocidentais, a unidade cristã poderia ser restaurada.



Tudo isso poderia ser conseguido, pensava Urbano, por uma força inspirada pela Igreja, em uma guerra santa. Santo Agostinho, escrevendo no século V, definira como os cristãos deveriam encarar a guerra. Seguindo seus ensinamentos, Urbano julgava que uma guerra poderia ser justa, e até considerada um ato de amor, se seu objetivo fosse afastar os pecadores do mal; se fosse conduzida, sob a devida autoridade, com uma disposição caritativa do coração. A Igreja sustinha ser a penitência necessária pelo derramamento de sangue cristão, mesmo por uma causa digna; mas uma guerra contra inimigos da fé, tais como os muçulmanos, era outra coisa.

Antes da época de Urbano, a Espanha fora o principal teatro do confronto entre as fés católica e islâmica. Os árabes tinham invadido o território espanhol no século VIII, mas jamais conseguiram completar a conquista. Desde o primeiro momento, os pequenos estados cristãos que sobreviveram no norte da Espanha tinham acalentado o objetivo de reconquistar os territórios perdidos do sul. Essa reconquista demoraria oito séculos. Praticamente desde o início, a luta na Espanha atraíra cristãos de outros lugares. Em 1085, a reconquista alcançara seu maior êxito, ao retomar a cidade de Toledo, antiga capital que ficava no centro do país. Quando Urbano decidiu responder ao pedido de Aleixo, a tradição espanhola de uma guerra justa e, às vezes, vitoriosa contra o islã era um dos elementos com que ele podia contar para atrair soldados para sua causa.

Outro fator favorável era a tradição de peregrinação a Jerusalém. Urbano considerava a Cidade Santa como o objetivo adequado para os exércitos da guerra santa, em vez das cidades asiáticas mais próximas que Aleixo tinha em mente. O papa resolveu tratar os cruzados como peregrinos e, como todos os peregrinos, eles se tornariam membros temporários da Igreja, sujeitos apenas às cortes eclesiásticas. Eles e suas propriedades receberiam a proteção da Igreja.
Urbano não tinha dúvidas sobre as recompensas que os peregrinos guerreiros podiam esperar. Os que morriam pela fé, havia muito que tinham a promessa da recompensa no céu. Mas Urbano determinou que todos os que fossem lutar contra os infiéis, morressem ou sobrevivessem, poderiam confiar na completa absolvição de seus pecados e, portanto, na salvação certa.

O papa viajou da Itália para sua França natal, a terra da cavalaria, acostumada a mandar cavaleiros para lutar contra os muçulmanos na Espanha. Em Clermont, em Auvergne, convocou um concílio dos bispos e abades da França. Ali, em 27 de novembro de 1095, diante dos clérigos e de um grupo seleto de cavaleiros, Urbano fez, a julgar pelos resultados, um dos grandes discursos da história. Ele descreveu os sofrimentos dos cristãos no Oriente, contando como os turcos "destruíram os altares que poluíram com suas práticas imundas. Eles circuncidaram os cristãos, espalhando o sangue sobre os altares e derramando-o nas pias de água benta. E abrem a barriga daqueles que escolhem atormentar com uma morte repugnante, arrancam-Ihes as tripas e amarram-nos em estacas, arrastam-nos pelo chão e açoitam-nos, antes de matá-los enquanto jazem no solo com suas entranhas dependuradas".

Ou uma eloqüência similar: os relatos sobre a oratória de Urbano foram escritos anos depois, registrando o que poderia, ou deveria, ter sido dito. Mas os diferentes relatos concordam quanto ao essencial de seu discurso: que o desastre se abatera sobre os devotos de Cristo no Oriente; que os cavaleiros do Ocidente deviam parar com suas guerras privadas e voltar suas espadas contra os infiéis, para vingar e redimir os lugares sagrados agora deixados no abandono; que todos que participassem da batalha de Cristo tinham garantida a remissão de seus pecados. A assembléia respondeu a Urbano com o grito de "Deus lo volt": Deus o quer.

E assim foi lançada a Primeira Cruzada, primeira de uma centena, de guerras santas convocadas por papas ao longo de cinco séculos para combater os inimigos da cristandade, fossem muçulmanos, pagãos ou cristãos errantes, fosse no Oriente ou na Europa. A iniciativa do papa era crucial para lançar uma Cruzada, pois só um papa tinha autoridade para anunciar a absolvição de pecados que valia por todos os sacrifícios.

O grupo reunido em Clermont escolheu Ademar, bispo da vizinha Le Puy, para liderar a expedição.
Era um clérigo que contava com o favor do papa, mas também um homem com talentos mundanos, um cavaleiro capaz de cavalgar com a armadura dos guerreiros. Por ordem de Urbano, os cavaleiros de Ademar costuraram cruzes em seus trajes, para marcá-los como guerreiros da Cruz - de onde, anos depois, veio o nome de cruzado. Os clérigos mandaram pregadores para todos os lugares circunvizinhos, a fim de levar as novas da guerra santa do papa e convocar recrutas para a marcha ao Oriente que começaria no verão seguinte.

Multidões deram-lhe ouvidos e assumiram a Cruz. Grandes senhores resolveram marchar com seus dependentes. Alguns desses barões tinham muito a perder. Raimundo de Toulouse, um nobre de mais de cinqüenta anos que passara a vida a consolidar suas grandes propriedades no sul da França, jurou jamais voltar a suas ricas terras, para viver e morrer em peregrinação. Godofredo de Bouillon vendeu a cidade de Verdun, a leste de Paris, e hipotecou suas propriedades para levantar o dinheiro necessário ao pagamento dos soldados que precisava.

Outros talvez tivessem motivos menos nobres. Urbano falara da falta de território na França: “O país em que viveis está superpovoado e mal fornece alimento para seu povo: eis por que vos devorais e lutais uns contra os outros”. Para alguns homens, os domínios dos infiéis talvez atraíssem tanto quanto os santuários de Cristo. Mas o simples desejo pelas posses dos outros dificilmente levaria homens racionais a Jerusalém. Ainda havia terras não cultivadas na França, e muito mais na Alemanha. E para os cavaleiros, dos quais se esperava que viajassem com cavalos, mulas de carga e criados, a cruzada era cara; um cavaleiro pobre só poderia enfrentar a jornada se encontrasse um patrocinador rico.

O plano de Clermont previra uma força armada e treinada para a guerra, com comandantes militares experientes que se reuniriam em Constantinopla e marchariam sobre Jerusalém. Os pregadores que Urbano inspirou produziram isso, e muito mais. A Cruzada tornou-se um movimento tão popular quanto militar.

O mais famoso desses pregadores foi Pedro, o Eremita, um orador brilhante e homem santo reconhecido, a tal ponto que as multidões arrancavam pêlos do burro dele para guardar como relíquia. Pedro era o orgulhoso possuidor de uma Carta Celestial que, dizia ele, lhe fora dada por um anjo e que lhe ordenava pregar a Cruzada para os pobres de Cristo que redimiriam a terra. Os camponeses devotos ouviam-no e partiam para a Terra Santa. Não tinham nem cavalos nem armaduras, mas ferravam seus bois e empilhavam suas famílias nos carros, ou penduravam seus pertences aos ombros e caminhavam. Reuniam-se em torno de Colônia, esperando milagres; circulavam histórias de que Carlos Magno - o grande imperador que restaurara o poder da Europa ocidental no século VIII - ressuscitara para comandar a Cruzada. Eram multidões: até 60 mil, diziam alguns cronistas (que, no entanto, não tinham como sabê-lo). Entre a gente simples havia numerosos cavaleiros, mas o grosso da classe cavalheiresca ainda estava ocupado com os preparativos.

A Cruzada do Povo partiu de Colônia em abril de 1096, precedendo os exércitos do papa. Os cruzados viajavam em vários bandos, dos quais o de Pedro era o maior e mais desordenado. Mal a multidão havia partido e já fazia suas primeiras vítimas. Havia muitos judeus nas cidades comerciais do Reno. Muitos dos cruzados mal captavam a distinção entre judeus e muçulmanos e resolveram, contra as ordens da Igreja, forçar a conversão dos estranhos entre eles. Um cronista registrou o refrão da turba: "Partimos numa longa jornada para lutar contra os inimigos de Deus no Oriente e eis que diante de nossos olhos estão Seus piores adversários, os judeus. Precisamos cuidar deles primeiro". Os judeus apelaram para a súplica e grandes subornos das autoridades e, a princípio, garantiram proteção. Então, em maio, chegou o desvairado conde Emich de Leiningen, à frente de uma turba numerosa demais para ser detida. Em Worms e Mogúncia, ameaçou os judeus com batismo. Alguns prudentemente aceitaram a conversão e sobreviveram; os que se recusaram, foram massacrados. No decorrer do século XII, vários milhares de judeus pereceram em incidentes semelhantes que acompanharam cada Cruzada.

Deixando a carnificina para trás, os primeiros cruzados seguiram a rota tradicional dos peregrinos para Constantinopla: subiram o Reno, desceram o Danúbio e atravessaram os Balcãs. A cada nova cidade, as crianças perguntavam: "É Jerusalém?" Houve confusão a partir da Hungria: os peregrinos saquearam o campo, e as forças locais atacaram em represália. Após muitos meses, chegaram a Constantinopla, onde um perplexo Aleixo recebeu-os com cautela. Ordenou que a Cruzada do Povo fosse abrigada e alimentada fora dos muros da cidade e logo providenciou para que os peregrinos fossem transportados para o outro lado do Bósforo, onde iriam atravessar os 97 quilômetros de terra de ninguém que separavam Constantinopla de Nicéia, capital de Kilij Arslan, o hostil sultão seljúcida de Rum.

Em outubro, a Cruzada do Povo defrontou-se com seu primeiro inimigo sério. Um grupo, cercado pelos turcos no forte de uma colina, sem suprimento de água, suportou oito dias de sede. Desesperados, enfiaram trapos no esgoto do castelo e espremeram o líquido. Por fim, renderam-se, alguns tornando-se muçulmanos. Os outros foram vendidos como escravos, ou usados como alvo em treinamento militar. O corpo principal, um pouco mais tarde, caiu numa emboscada de Kilij Arslan e foi massacrado ou escravizado. Pedro, o Eremita, que voltara para Constantinopla antes do desastre, sobreviveu.

Entrementes, a segunda onda de cruzados atravessava a Europa. Começaram a chegar a Constantinopla em dezembro de 1096; os últimos apareceram em abril de 1097. Tinham vindo por três rotas. Da Lorena e do Reno, Godofredo de Bouillon e Balduíno trouxeram seus homens pelo caminho do Danúbio; eram muitos e bem organizados para que os húngaros Ihes criassem problemas, além de ter pago pela comida, em vez de saquear. Do sul da França, os provençais do bispo Ademar e do conde Raimundo atravessaram o norte da Itália e desceram a costa dálmata. Os cruzados do norte da França e Flandres foram até o calcanhar da Itália e atravessaram o Adriático de navio, até o território bizantino. Esse último exército trazia alguns recrutas inesperados dos normandos da Apúlia, então mergulhados em guerra civil. O conde Boemundo de Tarento, belo como uma estátua grega, vigoroso na batalha, mas longe de ser rico, estava sitiando Amalfi quando ouviu falar da Cruzada. Sequioso por riquezas espirituais e um domínio no Oriente, cortou seu mais precioso manto escarlate a fim de fazer cruzes para seus cavaleiros, abandonou o cerco de Amalfi e partiu para o encontro em Constantinopla.

As forças desses senhores todos eram tremendas. Os cavaleiros, com seus elmos e cotas de malha da cabeça aos pés, estavam mais bem protegidos do que seus adversários orientais, que geralmente usavam túnicas de malha, mas menos proteção na cabeça e perneiras de couro. Os mercenários ocidentais já eram famosos em Bizâncio, por formarem uma cavalaria pesada, treinada para o ataque em massa de lança em riste - homem, cavalo e arma fundidos em um único projétil irresistível. Dizia-se que um cavaleiro montado atravessaria os muros de Babilônia. Os únicos soldados islâmicos que lutavam assim eram os árabes do sul da Espanha, forçados a imitar o inimigo para não serem dizimados. Os turcos, árabes e outros membros das forças islâmicas eram excelentes na cavalaria ligeira; seus espadachins e arqueiros montados eram capazes de grande mobilidade e resistência.

A infantaria dos cruzados, que constituía sete oitavos do exército, lutava com lanças, machadinhas e as mais potentes bestas, as quais disparavam virotes - setas curtas - que atravessavam escudos e armaduras. Os muçulmanos registrariam, com elogios relutantes, a cooperação entre a cavalaria e a infantaria dos ocidentais, uma protegendo a outra, o que Ihes dava uma solidez que nenhuma nuvem de cavalaria ligeira podia romper.

Aos bizantinos, parecia que todo o Ocidente bárbaro estava migrando para a cidade deles, e duvidavam das intenções desses aliados. Aleixo explorou a chegada em levas dos cruzados. Com habilidade diplomática, manteve-os divididos e dependentes do império para os suprimentos; assim separados, cada senhor, a seu turno, jurou lealdade a Aleixo e prometeu dar-lhe todas as terras ganhas que tivessem pertencido a Bizâncio. Para a surpresa dos cruzados, Aleixo então eximiu-se de participar da aventura a que dera início com o apelo ao papa Urbano. Mobilizados para auxiliar um homem que Ihes negava sua liderança, os cruzados passaram a sentir pelos bizantinos uma antipatia que duraria quase todo o século XII.

Em maio de 1097, as forças da Cruzada já tinham atravessado o Bósforo e marchavam, com tropas bizantinas, em direção a Nicéia, sobre os ossos dos seguidores de Pedro, o Eremita. Kilij Arslan não estava lá: achara que a ameaça do Ocidente acabara com os entusiastas de Pedro e estava lutando contra inimigos muçulmanos mais a leste. Não pôde reunir tropas suficientes para derrotar os cruzados quando eles sitiaram Nicéia, e a cidade rendeu-se aos enviados de Aleixo. Os cruzados partiram para o sudeste, em direção ao planalto da Anatólia: eram talvez 40 mil, entre cavaleiros, soldados de infantaria e vivandeiros. Marchavam em duas divisões, a primeira um dia adiante da outra. Boemundo comandava a primeira; a segunda, liderada por Raimundo de Toulouse, incluía as forças de Godofredo e Ademar.

Do outro lado do passo de Doriléia, a 150 quilômetros de Nicéia, Kilij Arslan aguardava-os. No primeiro dia de julho, ao nascer do sol, a guarda avançada de Boemundo descobriu os morros cobertos de turcos, soltando gritos de guerra ininteligíveis, adiantando-se para cercá-los. Os cristãos formaram uma linha de batalha em torno do acampamento, contra a qual os turcos lançaram suas flechas de incrível distância. Pelas regras de guerra dos turcos, a vitória estava à vista; os cruzados achavam-se isolados e sem possibilidade de manobrar: não resistiriam para sempre.

Mas a linha dos cruzados se manteve, ao longo do calor crescente do dia. Por volta do meio-dia, os turcos se deram conta de que não tinham apanhado o inimigo na armadilha. A segunda parte do exército cruzado viera em auxílio da primeira, com as tropas do duque Godofredo caindo sobre os surpresos turcos como a ira de Deus. O reforçado exército cristão começou a avançar, e então os turcos perceberam que eram eles que estavam presos: o bispo Ademar emergia com seus provençais na retaguarda do inimigo. Os soldados de Kilij Arslan fugiram como puderam. Os cruzados perseguiram-nos até o acampamento deles e além, matando muitos. O acampamento, com seu tesouro de ouro, prata, cavalos, camelos, bois e ovelhas, caiu nas mãos dos cristãos.

Apesar da vitória, os cruzados ficaram muito impressionados com os turcos. "Não se poderia encontrar soldados melhores ou mais fortes: se pelo menos tivessem a fé verdadeira...", murmuravam entre si, de acordo com uma crônica da época. Por sua vez, os muçulmanos estavam completamente consternados. Um historiador damasceno começou seu relato sobre aquele ano fatal com uma descrição da batalha e da derrota dos turcos: “Quando chegaram as notícias sobre essa vergonhosa calamidade para a causa do islã, a ansiedade do povo tornou-se aguda e aumentou o alarme”.

Nos meses seguintes, os cruzados avançaram em direção à Síria. A presença das forças bizantinas que os acompanhavam reduziram-se a um mero símbolo; Aleixo e seu exército principal estavam ocupados em restabelecer o controle de Constantinopla sobre a costa da Ásia Menor após a passagem da Cruzada. Os seljúcidas ofereceram pouca resistência, mas a Anatólia foi um tremendo obstáculo em si mesma, especialmente no calor do verão; planícies ressequidas, lagos salgados e montanhas terríveis. Sofrendo continuamente, os cruzados arrastavam-se, deixando os mortos à beira das estradas. Adiante do platô, defrontaram-se com as grandes cadeias dos montes Taurus e Antitaurus - antigo território bizantino que fora tomado pelos armênios nativos na esteira do ataque dos turcos a Bizâncio. Sendo cristãos, os armênios acolheram os cruzados e os ajudaram a atravessar as montanhas. No final de outubro, chegaram a Antióquia, a maior cidade da Síria, presa muito mais rica que Jerusalém. A maioria de seus cavalos tinha morrido. Quatro de cada cinco cruzados teriam de lutar na próxima batalha a pé ou montados em burros.

Antióquia deveria ser inexpugnável. Suas imponentes muralhas, reforçadas por quatrocentas torres, eram uma obra-prima da engenharia romana; o perímetro delas era grande demais para permitir o bloqueio da cidade, o rio Oronte trazia um fornecimento constante de água, e a guarnição muçulmana era forte e bem suprida. Ao longo do outono e do inverno, os cruzados ficaram acampados do lado de fora da cidade, descobrindo que a Síria podia ser quase tão úmida, fria e lamacenta quanto a França; não tinham máquinas de assédio e logo estavam sem alimentos. Grupos que saíam em busca de forragem eram atacados por turcos. O desânimo espalhou-se e muitos cruzados fugiram da miséria e da fome.
O que trouxe finalmente a vitória aos sitiadores foi uma combinação de sua esperteza com uma defesa fragmentada. Não só a Síria era uma colcha de retalhos de principados em rixa, como a unidade também desaparecera mais para o leste, após a guerra civil da década de 1090. Agora, na Mesopotâmia e na Pérsia, príncipes locais disputavam o poder.

As duas principais cidades do norte da Síria, Alepo e Damasco, estavam sob o domínio de príncipes turcos rivais; um terceiro soberano controlava o poderoso estado de Mosul, junto ao Tigre. O governador muçulmano de Antióquia oscilara demais e abertamente entre os senhores de Alepo e Damasco. Pediu ajuda aos dois, todavia eles não queriam se associar. Se esses dois príncipes tivessem combinado suas forças e marchado em auxílio, o cerco de Antióquia poderia ter sido rompido. Mas as forças damascenas atacaram em dezembro, e as de Alepo em fevereiro; nenhuma delas suportou as cargas furiosas dos cavaleiros cristãos.
Veio a primavera e, com ela, alívio para ambos os lados. Em março de 1098, uma frota de Constantinopla desembarcou peregrinos e comida; mas, depois disso, a fome ficou mais aguda. Em maio, chegaram notícias de que o senhor de Mosul, Kerbogha, vinha com guerreiros persas e mesopotâmicos para ajudar seus companheiros muçulmanos da Síria. Com a aproximação desse exército, muitos cruzados fugiram de volta para o território bizantino. A meio caminho de Constantinopla, em Aksehir, encontraram Aleixo e seu exército e contaram o que estava acontecendo.

O avanço de Kerbogha foi desviado por três semanas cruciais. Algum tempo antes, quando os cruzados tinham emergido das montanhas Antitaurus, Balduíno, o irmão mais moço de Godofredo de Bouillon, tomara cem cavaleiros e avançara para o leste, ao longo da linha mantida precariamente por principados armênios. Sua iniciativa fora recompensada: os cristãos da região reuniram-se sob sua bandeira, duas fortalezas turcas do alto Eufrates tombaram, e o príncipe armênio Thoros, de Edessa, adotou Balduínio como filho. Em menos de um mês, Thoros morreu num tumulto, e Balduíno tornou-se o primeiro senhor de um estado cruzado, rico, mas muito próximo do caminho entre Mosul e Antióquia. Kerbogha não queria deixar seu flanco exposto e desviou-se para atacar Edessa. Durante quase todo o mês de maio assediou Balduíno, antes de abandonar a tentativa e voltar a seu objetivo, Antióquia, onde chegou com um atraso fatal de quatro dias.
Entrementes, Boemundo estivera explorando novos caminhos. De alguma forma, fizera contato com um renegado armênio da guarnição de Antióquia, comandante de três das quatrocentas torres. Sem se abalar com as muitas defecções, Boemundo comandou o exército para longe da cidade, como se fosse lutar contra Kerbogha. Então, na noite de 2 de junho, voltou para o encontro marcado com o comandante armênio, que deixou os cruzados entrarem secretamente na cidade. No final do dia seguinte, todos os muçulmanos de Antióquia estavam mortos; as ruas estreitas encontravam-se quase bloqueadas pelos cadáveres.

Em 7 de junho, chegou Kerbogha, e foi a vez de os cristãos serem assediados. Suportaram miséria, fome e medo durante três semanas; alguns fugiram para as montanhas ou para a costa. Mas o moral dos que ficaram foi dramaticamente restaurado. Um peregrino provençal, Pedro Bartolomeu, revelou que santo André falara com ele numa visão e declarara que uma relíquia muito sagrada, a Santa lança que perfurara Cristo na cruz, estava escondida na catedral. Após um dia de escavações, Pedro Bartolomeu achou uma ponta de lança antiga. Alguns, entre eles o bispo Ademar, suspeitaram que ele não encontrara mais do que ele próprio havia escondido, mas muitos acreditaram e se regozijaram. Então santo André falou a Pedro novamente, prometendo vitórias se os cristãos atacassem os sitiadores muçulmanos.

E assim, em 28 de junho, os cruzados se confessaram, ouviram missa, formaram seis batalhões e saíram sob o comando de Boemundo, levando a Santa lança com eles. O inimigo era muito maior em número, mas havia discórdia no acampamento de Kerbogha. Os príncipes de Alepo e Damasco e os árabes nômades do deserto da Síria tinham se unido ao exército muçulmano; agora, se perguntavam se uma vitória do senhor de Mosul seria do interesse deles a longo prazo. Os cristãos não tinham dúvidas desse tipo: avançaram resolutamente e conquistaram uma vitória mais completa que a de Doriléia. Antióquia era deles. O morticínio daquele dia decidiu os eventos na Síria por vários anos, com o poder dos seljúcidas não destruído, mas seriamente desarticulado. Pensando apenas na própria segurança, os príncipes turcos fugiram para suas cidades.

Ao receber as notícias do que se passara na Síria, os fatímidas do Egito avançaram sobre a Jerusalém dos sunitas. Após seis semanas de cerco, a guarnição seljúcida chegou a um acordo: aceitaram grande quantidade de prata egípcia e foram embora. A Cidade Santa estava em mãos xiitas novamente.
Tecnicamente, o novo soberano de Antióquia deveria ser o imperador Aleixo, sob cujos domínios a cidade estivera outrora. Mas o bizantino acreditara no que tinham contado os aterrorizados desertores que o encontraram em Aksehir e dera Antióquia como perdida. O grande vitorioso fora Boemundo, que se achava no direito de ficar com Antióquia, decidindo esquecer seu voto de lealdade a Aleixo. A reivindicação do imperador sobre a cidade iria azedar as relações com os cavaleiros ocidentais pelo século XII afora e levaria a vários confrontos armados.
Durante o verão de 1098, uma epidemia de tifo matou muita gente na cidade, inclusive o bispo Ademar. Sem sua orientação, os grandes senhores ficaram paralisados pela indecisão. Permaneceram no vale do Oronte, até os soldados comuns ameaçarem derrubar pedra por pedra suas conquistas se o exército não retomasse a peregrinação para Jerusalém. Por fim, em janeiro de 1099, a Cruzada avançou para o sul novamente. Boemundo, porém, ficou em Antióquia, o domínio oriental que cobiçara e ganhara.

Sob a liderança de Raimundo de Toulouse, os cruzados subiram o vale do Oronte e depois foram em direção ao mar. Não estavam mais em território seljúcida, e os governantes árabes locais ficaram felizes em ajudar os inimigos dos turcos, oferecendo guias e alimentos. Sem oposição séria, os cruzados desceram pela costa, passando por Trípoli, Beirute, Sídon, Tiro e Acre. Perto de Jafa, dobraram para o interior, entre os montes rochosos da Judéia. Em 7 de junho, avistaram Jerusalém, ajoelharam-se e choraram. A peregrinação armada já durava três anos, e apenas um em cada cinco ali chegara.

Mas o fim ainda não fora atingido. Jerusalém era uma fortaleza importante, cheia de provisões, que só poderia ser tomada por um ataque furioso, por traição ou por um sítio sistemático com todas as máquinas de guerra que os cruzados não possuíam. Tentou-se um assalto, com muito ardor, mas sem apoio de artilharia ou escadas de sítio: foi um sangrento fracasso. A traição era impraticável: os fatímidas tinham prudentemente expulsado todos os cristãos da cidade. Os cruzados ficaram frustrados, e com muita sede, pois os fatímidas tinham envenenado todos os poços em um raio de quilômetros. E chegavam notícias do Egito de que estava sendo reunido um grande exército para libertar Jerusalém, que uma frota partira para bloquear a costa da Palestina e que o imperador Aleixo voltara-se contra a Cruzada e fizera as pazes com o califa do Cairo.

Então, na hora certa, chegou ajuda inesperada de uma das grandes cidades mercantis da Itália, cujos líderes, embora interessados em entrar no mercado do Oriente Médio, estavam certamente motivados pelo espírito cruzado, tal como o resto da Europa. Galeras genovesas entraram no porto palestino de Jafa antes que se fechasse o bloqueio egípcio da costa, trazendo materiais para construir fortalezas móveis: grandes catapultas e torres de sítio.

Durante a noite de 6 de julho, o espírito do bispo Ademar apareceu para um dos cruzados, prometendo a vitória aos cristãos após nove dias se eles jejuassem e fizessem uma procissão descalços em torno da cidade. Eles obedeceram, e uma grande coluna abriu caminho através das escarpas rochosas, mantendo-se a distância das flechas muçulmanas, carregando cruzes e relíquias e cantando salmos. Em derrisão, a guarnição muçulmana, em sua maioria sudaneses e árabes do deserto, içou cruzes para os torreões e alguns cuspiram no emblema sagrado diante dos cristãos.

No entardecer de 14 de julho, Raimundo de Toulouse fez avançar uma primeira torre, contra uma saraivada de flechas, pedras e uma espécie de napalm primitivo - cujo segredo perdeu-se - que os cruzados chamavam de fogo grego. Eles atingiram a muralha do sul, mas não conseguiram fincar pé. Na manhã seguinte, uma segunda torre, comandada por Godofredo de Bouillon, atacou as defesas do norte. Dessa vez, os cruzados conseguiram montar o assalto e invadiram a cidade, matando todos que encontravam. Na manhã seguinte, Jerusalém já fora totalmente saqueada, e muitos de seus habitantes, muçulmanos e judeus, liquidados. "Os cavalos seguiam com sangue até os joelhos e, mais ainda, até as rédeas. Era um justo e maravilhoso julgamento de Deus" - assim escreveu um cruzado. O primeiro ato dos vencedores foi correr, chorando de gratidão, para a igreja do Santo Sepulcro e agradecer a Deus. O segundo foi olhar com alguma perplexidade para a conquista e discutir quem mandaria nela. A meia dúzia de líderes ofereceu a coroa para Raimundo de Toulouse, mas ele declarou, talvez com devoção verdadeira, que não seria rei no reino de Cristo. A oferta foi então para Godofredo de Bouillon, que a princípio não aceitou, mas depois se deixou persuadir. Escolheu o título de príncipe, em vez de rei. Até esse título honorífico Raimundo achou repugnante.

A chegada do exército fatímida do Egito forçou os cristãos a uma união relutante que durou o suficiente para efetuarem um ataque arrasador ao acampamento egípcio. Ganharam uma batalha fácil e um enorme butim; muitos voltaram para casa, considerando a peregrinação consumada. Tendo atingido seu objetivo, apesar das privações, da oposição muçulmana e de sua própria falta de liderança, consideraram que só a intervenção de Deus podia explicar a vitória.

Raimundo lembrou seu voto de jamais voltar do Oriente, mas, ainda magoado pela presunção de Godofredo, decidiu visitar Constantinopla; este conservou apenas trezentos cavaleiros e outros tantos soldados de infantaria para defender o Santo Sepulcro. A posição dos cruzados já era precária, e ficou ainda mais no ano seguinte, 1100, quando Godofredo adoeceu e morreu, e Boemundo, em campanha contra os turcos de Danishmend, caiu numa emboscada e foi capturado. O papa Urbano morrera sem saber da vitória que inspirara, mas seu sucessor Pascoal estava igualmente determinado a salvar Jerusalém. Outra grande força foi reunida; dessa vez, eram cerca de 50 mil peregrinos armados. Esses reforços chegaram a Constantinopla em 1101 e ficaram contentes em ganhar a companhia de Raimundo de Toulouse. Todavia, o desastre sobreveio na Anatólia. Os turcos tinham aprendido com suas derrotas e evitaram o combate direto. Em vez disso, seguiram as colunas cristãs que se arrastavam sob o calor abrasador, atormentando-as com flechas e esperando até que a sede e a exaustão rompessem a organização. Raimundo conseguiu abrir caminho de volta para Constantinopla e dali navegou para a Palestina e para uma vida dedicada à guerra santa; uns poucos cruzados conseguiram chegar à Síria. Mas nenhum auxílio verdadeiro chegou a Jerusalém por terra.

Os jovens estados cristãos foram salvos não pela própria força, mas pela extrema desunião de seus inimigos. Para muitos xiitas ou sunitas, os cristãos não eram os adversários mais antipáticos. Qualquer líder muçulmano forte o suficiente para ameaçar os cristãos seria visto como uma ameaça ainda maior a seus vizinhos islâmicos.
Os cristãos também tiveram sorte com sua liderança. Após a captura de Boemundo, Balduíno de Edessa assumiu o controle no norte da Síria e logo foi chamado a herdar o trono de seu irmão em Jerusalém. Ele não teve a modéstia de Godofredo em declarar-se rei; por dezoito anos, governou com habilidade e coragem.

Durante décadas, nenhuma outra grande coluna armada tentou abrir passagem pela Anatólia, mas as frotas de Gênova, Pisa e Veneza trouxeram para o Oriente um fluxo constante de cruzados, peregrinos desarmados e povoadores de ambos os sexos. Ao cabo dessas viagens, as terras dos cruzados ficaram conhecidas na Europa como Outremer – “Além-Mar”. Com a ajuda dos novos cruzados, Balduíno manteve uma guerra contínua contra os muçulmanos dos arredores, com êxitos cumulativos. Uma a uma, as cidades da Palestina foram dominadas. Quando Balduíno morreu, o reino de Jerusalém tinha uma fronteira firme ao longo do rio Jordão e um domínio menos seguro sobre os territórios mais a leste. No sul, Balduíno tomara e fortificara Aylah - atual Eilat -, junto ao mar Vermelho; o Sinai continuava a ser uma terra de beduínos que roubavam de egípcios e europeus com imparcialidade. Todo o litoral ocidental se submetera, com exceção do forte fatímida de Ascalão e da cidade peninsular de Tiro - que quase derrotara Alexandre, o Grande, em um dos grandes sítios da antiguidade, e que desafiou os cristãos até 1124. Ao norte, o território de Balduíno ia até Beirute. Adiante, ficava o condado de Trípoli, de Raimundo de Toulouse e seus herdeiros, que ia até as fronteiras de Antióquia e devia alguma obediência a Jerusalém. Os quatro estados cruzados de Jerusalém, Trípoli, Antióquia e Edessa formavam uma frágil faixa de domínio cristão que se estendia por mil quilômetros, do mar Vermelho às cabeceiras do Eufrates; em seu ponto mais estreito, as terras cristãs tinham apenas quinze quilômetros de largura.

Enquanto isso, Boemundo de Antióquia recuperava sua liberdade e voltava à Itália a fim de recrutar voluntários para uma nova Cruzada que marcharia contra seu inimigo, a Bizâncio do traidor Aleixo. Em 1108, foi derrotado em Durazzo - na atual Albânia - e retornou à Itália para morrer, desiludido.

O sobrinho de Boemundo, Tancredo, tornou-se senhor efetivo de Antióquia e mergulhou com entusiasmo na política da região. Os normandos e turcos descobriram que tinham muito em comum, em coragem e cavalheirismo; um cronista árabe anotou com alguma admiração: "Esses homens costumavam lutar um contra o outro e, depois do confronto, encontravam-se para jantar e conversar". Já em 1108, as alianças estavam surpreendentemente misturadas. Nesse ano, Jawali de Mosul, em aliança com os cristãos de Edessa, atacou seu companheiro seljúcida Ridwan de Alepo, que foi salvo por seu vizinho cristão Tancredo de Antióquia.

Outremer tornou-se uma estranha fusão de Oriente e Ocidente. Em todos os estados cristãos, jamais houve muito mais do que 2 mil nobres e cavaleiros, que mantinham cidades e aldeias em homenagem feudal aos grandes suseranos de Jerusalém, Antióquia, Trípoli e Edessa. Abaixo deles na hierarquia feudal estavam os soldados comuns das Cruzadas e seus descendentes, junto com os colonos que logo superaram em número os cruzados. Os povoadores ocidentais da Palestina vinham da França e das regiões de língua francesa da Lorena, Flandres e Sicília, mas havia contingentes de todas as nações católicas, de Portugal à Noruega. Os estados cruzados eram propriedade comum de toda a cristandade ocidental. Para os muçulmanos, porém, todos os povoadores eram al-Faranj – “francos”.

Os francos colocaram sua marca na paisagem com um generoso programa de construção de igrejas. Europeus piedosos, tímidos ou débeis demais para acompanhar as Cruzadas, forneciam os fundos; cristãos e muçulmanos nativos, treinados apressadamente nas técnicas e estilos de construção da cristandade do Ocidente, entravam com a mão-de-obra. O mais esplêndido dos novos edifícios era a igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, que guardava o suposto local do Calvário e do túmulo de Cristo, junto com as ruínas da igreja do século IV de Constantino.

Os colonizadores decidiram expulsar os muçulmanos de todos os lugares sagrados, inclusive Jerusalém. Mas, fora isso, os muçulmanos, judeus e cristãos nativos não foram perturbados. No campo, nativos e ocidentais mantiveram-se separados, e suas aldeias eram discerníveis a distância: as dos nativos de qualquer fé eram um amontoado confuso em torno de um poço, um moinho e um forno; oliveiras e vinhas cercavam as casas. Os colonizadores ocidentais construíam suas aldeias e vilas segundo o desenho de uma grade, com a igreja e a corte de justiça no centro.

Nas cidades costeiras, as várias nacionalidades se misturavam, mas predominavam os mercadores italianos. Eram eles que providenciavam o transporte de peregrinos e guerreiros e enriqueciam com o comércio do qual dependiam os reinos. Nas cidades mercantis, venezianos, genoveses e pisanos estabeleceram comunas que eram dirigidas quase independentemente dos estados francos por funcionários designados pelas cidades-matrizes.

Em todo Outremer, só o testemunho dos católicos era considerado totalmente válido. Nenhum muçulmano ou cristão ortodoxo nativo podia aspirar a um lugar na nova hierarquia feudal, uma vez que um dever importante de um vassalo feudal era tomar assento na corte e oferecer sua visão das causas; uma única voz católica tinha peso total. Mas havia uma tentativa de ser justo com todos os súditos. Enquanto as principais cortes cíveis estavam inteiramente em mãos ocidentais, permitia-se às cortes nativas tratar de causas menores. As vilas podiam se autogovernar, desde que pagassem impostos aos novos senhores. Alguns muçulmanos admitiam estar mais prósperos sob a justiça franca do que em uma nação islâmica.

Os anos passaram e levaram consigo os heróis da Primeira Cruzada. A geração seguinte dos senhores de Outremer tinha, em sua maioria, nascido lá mesmo e sentia-se em casa, embora mantivesse muitos hábitos ocidentais que espantavam os muçulmanos. Aos olhos orientais, os europeus, embora indiscutivelmente corajosos, não tinham nenhum senso de honra ou vergonha. Deixavam que suas mulheres andassem sem véus e até permitiam que suas esposas falassem com outros homens na rua. O Oriente ensinou aos colonizadores algumas coisas: tolerância para com os muçulmanos com os quais negociavam e em companhia dos quais caçavam quando não estavam em guerra; um gosto por azeitonas, uvas e pão de trigo branco - um contraste maravilhoso com o escuro pão de centeio do norte da Europa -; o uso de perfumes, turbantes, roupas finas e folgadas; dançarinas nas festas e carpideiras nos funerais. Segundo a maioria dos padrões ocidentais, levavam uma vida de luxo extravagante, financiada pelos impostos cobrados do campesinato local. Mas havia muito do mundo islâmico que os colonizadores jamais perceberam. Na sociedade muçulmana, teólogos e advogados eruditos assessoravam os reis e administravam seus domínios; estudiosos debatiam as idéias científicas dos gregos antigos. Um pouco do conhecimento do Oriente estava agora chegando à Europa. Mas, numa época em que intelectuais ocidentais como Geraldo de Cremona e Adelardo de Bath estavam absorvendo a matemática, a ciência e a filosofia de manuscritos árabes, os colonos do Levante, que aprenderam a conversar livremente com os muçulmanos, sorveram pouco da verdadeira cultura do Oriente. É verdade que eles tinham mais contato com os turcos, que, tal como os cavaleiros cruzados, preocupavam-se antes com esportes e guerras do que com o conhecimento dos árabes.

E, sem sua bravura militar, os cruzados não teriam sobrevivido uma década no Oriente. Apenas pelo mar estavam seguros. Os turcos ainda não eram marinheiros competentes, e os povos da Síria achavam que só os loucos podiam se confiar às ondas. Dos estados muçulmanos, somente o Egito possuía marinha, a qual não sobreviveu a um encontro com as galeras venezianas diante de Ascalão, em 1123. Mas, por terra, jamais havia segurança. Outremer não tinha fronteiras naturais, e seu grande comprimento fazia de sua defesa um pesadelo. Pequenas campanhas seguiam-se umas às outras, sem pausa. Para sua defesa contava, em primeiro lugar, com os recrutas feudais dos senhores ocidentais, ajudados por novas levas de peregrinos armados e mercenários. Os armênios também contribuíam, e os maronitas das montanhas do Líbano tinham boa reputação como arqueiros e infantaria leve, mas, em geral, não se podia confiar em que os cristãos orientais lutariam pelos católicos. Urbano II fora mal informado sobre os sofrimentos de seus correligionários do Oriente; a maioria deles achava o papa tão alienígena quanto o califa.

À medida que o século avançava, duas extraordinárias instituições começaram a contribuir para a defesa dos estados cristãos: as ordens dos Cavaleiros Hospitalários de São João e dos Cavaleiros Templários - ao mesmo tempo soldados e monges. As ordens começaram em Jerusalém como fraternidades religiosas que cuidavam dos peregrinos, os Hospitalários baseados numa hospedaria fundada por uma abadia católica no século XI, os Templários numa casa ao lado de uma construção que se acreditava fosse o templo de Salomão. Os Templários tinham entre seus deveres patrulhar as estradas e escoltar peregrinos entre a costa e Jerusalém. Da proteção aos peregrinos eles passaram à defesa do reino e emergiram como guerreiros completos na década de 1130. Os Hospitalários, de início, não tinham conexão militar: preocupavam-se em cuidar dos peregrinos pobres que estivessem doentes. Com o tempo, porém, não resistiram à ideologia cada vez mais militante dos Templários e chegaram ao campo de batalha por volta de 1150. Cavaleiros em busca da salvação vinham de todas as partes da cristandade ocidental para essas ordens. Senhores piedosos deixavam para elas riquezas e terras em todos os países; na metade do século XII, já tinham construído seus próprios castelos em Outremer. Viviam com austeridade e deviam obediência total a seus senhores. Sua disciplina fez deles os exércitos mais temíveis da cristandade.

Entre os muçulmanos não havia nada que se comparasse às ordens militares. Porém, existia um grupo ainda mais dedicado: os Assassinos. Esses xiitas fanáticos tinham vindo de seu local de origem, na Pérsia, e se estabelecido em castelos dos morros do norte da Síria, no início do século XII. O exato segredo de suas crenças religiosas perdeu-se no tempo. Tudo o que seus contemporâneos sabiam era que eles também deviam obediência completa ao senhor da ordem; que eram extremamente versados em drogas e disfarces; e que, ao campo de batalha, preferiam o assassinato meticulosamente planejado dos líderes de seus inimigos.

Os cruzados ficaram sabendo deles pela primeira vez em 1103, quando o governante da cidade síria de Homs, que orava por uma vitória contra Raimundo de Toulouse, foi esfaqueado ao deixar a mesquita. Os Assassinos consideravam os poderosos líderes sunitas como inimigos ainda piores que os cristãos; para os cruzados, eles se tornaram tanto uma ameaça terrível quanto aliados potenciais. A maioria dos soberanos cristãos salvaguardava sua vida pagando tributo aos Assassinos. Apenas os Templários e Hospitalários se recusavam a isso: estavam acima de tal chantagem, pois seus senhores não estabeleciam valor para a vida deles. Com efeito, depois que os Templários e Hospitalários tornaram-se donos de dois vastos trechos de terra no norte da Síria, adjacentes à fortaleza dos Assassinos, foram estes que passaram a pagar um tributo anual aos cavaleiros cristãos.

Pouco a pouco, a atitude dos muçulmanos em relação aos cristãos tornou-se mais dura. No início, houvera muita confusão: alguns sunitas acreditavam que os cruzados tinham sido chamados pelos malditos fatímidas para destruir os únicos muçulmanos verdadeiros. Mas, já em 1105, cultos mestres sunitas deram-se conta de que a Cruzada era apenas uma parte da expansão do poder franco que começara com as vitórias na Sicília e na Espanha, e opinaram que o islã unido devia responder. Poucos anos depois, os governantes passaram a sonhar com a jihad, “guerra santa”, contra os infiéis - um conceito dos primeiros anos de expansão do islamismo que estava dormente desde o século VII. Para destruir Outremer, um atacante precisaria controlar Alepo e Damasco, as duas cidades estratégicas da Síria que continuavam fora das mãos cristãs. Nos primeiros anos de Outremer, o soberano de Damasco aliara-se com freqüência aos cristãos, enquanto Alepo era objeto de feroz competição entre várias facções muçulmanas e os francos.

O impasse durou até surgir um novo paladino do islã: Zengi, o soberano turco de Mosul. O título de Zengi era de atabeg, ou regente; em teoria, era vassalo do sultão de Bagdá, mas, com o esfacelamento do império persa dos seljúcidas, senhores regionais como Zengi tinham tanta autonomia quanto desejassem. Em 1128, Zengi anexou Alepo. Escritores muçulmanos da época descreveram-no como o primeiro de um poderoso trio dedicado à guerra santa contra os infiéis. Quanto aos outros dois - seu filho Nur al-Din e o general deste, Saladino -, o retrato dos cronistas era verdadeiro. Todavia a postura de Zengi contra os cristãos foi quase acidental. Ele era um soldado formidável, mas não famoso por sua devoção. Sendo senhor de Mosul, preocupava-se principalmente com a política na Mesopotâmia e na Pérsia. Na Síria, hostilizou os cristãos por vinte anos, mas solapou Damasco com uma persistência ainda maior. Em 1140, assediou essa cidade, sem êxito. Desviado de seu objetivo primeiro, voltou sua atenção para o norte. Em 1144, atacou um aliado muçulmano do conde de Edessa e, quando o conde e seu exército vieram em auxílio, mudou a direção do ataque para a própria Edessa. Zengi conquistou rapidamente a cidade indefesa e, depois, boa parte do resto do estado.

Edessa foi a primeira cidade importante de Outremer a ser perdida, e sua queda repercutiu no Ocidente. Uma grande derrota exigia um contra-ataque potente. Em 1146, o rei da França, Luís VII, fez o juramento dos cruzados, e um francês ainda mais influente se comprometeu com a nova Cruzada. Bernardo, abade de Clairvaux, famoso por sua eloqüência e reverenciado por sua santidade - foi canonizado em 1174, pouco depois de sua morte -, congregou os nobres franceses em Vézelay, na Borgonha, e inspirou-os a seguir o rei. Foi então à Alemanha e persuadiu o imperador Conrado e seus cavaleiros a lutar ao lado dos franceses.

Essa Segunda Cruzada, da qual se esperava tanto, fracassou completamente. O contingente germânico tentou atravessar Anatólia no outono de 1147 e defrontou-se com os mesmos desastres da expedição de 1101; os miseráveis sobreviventes voltaram para Nicéia. Três meses depois, os franceses, levando os remanescentes alemães, marcharam pelas bordas do território bizantino no oeste da Ásia Menor. Os turcos e a região selvagem destruíram os mais mal equipados, mas o rei francês, o imperador germânico e alguns dos cavaleiros sobreviveram o suficiente para abandonar a marcha e tomar um navio para Outremer em Adália, atual Antália, na costa meridional da Ásia Menor. Quando chegaram, com um exército ainda temível, a situação política havia mudado totalmente.

O terrível Zengi morrera antes da chegada da cruzada. Ao acordar de uma noite de bebedeira, vira seus criados acabando com o vinho; proferira ameaças medonhas e caíra novamente no sono. Para proteger-se, os criados certificaram-se de que Zengi não acordasse nunca mais. Seus filhos sucederam-no: Saif al-Din, em Mosul, e Nur al-Din, em Alepo. O conde franco de Edessa reconquistou sua capital por um breve período, mas Nur al-Din retomou-a logo. Em 1148, quando os cruzados reuniram suas tropas em Acre, Edessa parecia inexpugnável. Decidiram então tentar Damasco. Para alguns dos cavaleiros de Outremer, o objetivo deve ter parecido maluco: sabiam que o soberano de Damasco era o aliado mais leal dos cristãos em toda a Síria. Outros, porém, estavam decididos a impedir a união da Síria muçulmana.

Os cavaleiros da Segunda Cruzada atingiram Damasco, tomaram posições num local com muita água e prepararam-se para sitiar a cidade. Nessa situação extrema, os muçulmanos damascenos decidiram que preferiam o filho de Zengi a um príncipe franco. Pediram ajuda a Nur al-Din, que, embora ocupado com confusões no norte de seu reino, atendeu prontamente. Na pressa de concluir o cerco antes da chegada de Nur al-Din, os cruzados cometeram o erro de mudar o ponto de ataque para um lugar onde as muralhas eram mais fracas, mas onde não havia água. As muralhas agüentaram. Ressecada, atordoada e desanimada, a Segunda Cruzada desistiu de Damasco após quatro dias de luta inconclusiva e, ao voltar ao solo cristão, desfez-se completamente. Nur al-Din voltou correndo para o norte, deixando aos damascenos o gozo de seus últimos momentos de independência.

Embora a eloqüência de são Bernardo não tenha alcançado seus objetivos no Oriente, a Segunda Cruzada conseguiu um triunfo importante na reconquista da Espanha. Uma força de cruzados ingleses e holandeses partira de navio para a Palestina em 1147, pretendendo navegar ao largo da península Ibérica e atravessar o estreito de Gibraltar. Quando passaram pela costa de Portugal, o rei Afonso se preparava para atacar a cidade de Lisboa, ainda em mãos muçulmanas. Juntaram-se à ofensiva e, com ajuda deles, Lisboa foi tomada pelos cristãos. Mais da metade da península Ibérica ainda estava em mãos árabes, mas, em poucas décadas, ganhos substanciais dos cristãos inclinariam a balança em seu favor.

No Levante, um novo equilíbrio estabeleceu-se após a Segunda Cruzada. Os francos tomaram Ascalão em 1153, controlando finalmente toda a costa de Outremer. Nur al-Din tomou Damasco em 1154, e toda a fronteira oriental estava ameaçada. Os cavaleiros de Outremer procuraram renovar uma aliança com Bizâncio, que, com o inperador Manuel Comneno, desenvolvia uma política de aquisições.

Uma vez que Nur al-Din não possuía Mosul, seus recursos eram menores que os de seu pai, mas também era menor seu interesse pela política islâmica. Entre Nur al-Din e a Jerusalém cristã não poderia haver paz duradoura, pois o filho de Zengi era um muçulmano sunita devoto, determinado a retomar a Cidade Santa. Ele fazia jus à lealdade dos súditos com sua devoção à religião e à justiça; fez doações a mesquitas e criou palácios de justiça aos quais todos os cidadãos podiam acorrer com suas queixas. Em cada cidade muçulmana da Síria criou escolas para instruir na verdadeira doutrina e para ensinar o dever da guerra santa contra os francos intrusos.

Os ensinamentos encontraram ouvidos receptivos, pois a queda de Edessa atraíra os muçulmanos para a causa da jihad. Nur al-Din encomendou em Damasco um púlpito esplêndido que seria instalado na grande mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, quando Alá quisesse que ela fosse libertada.

Na metade do século XII, no entanto, os reis de Jerusalém eram fortes demais para serem derrotados diretamente. O conflito principal mudou para o sul, onde o reino fatímida caíra no caos. Em 1154, o filho de criação de um vizir matara o jovem califa. No conflito resultante, sucessivos vizires foram depostos ou mortos, com a conseqüente desordem total, da qual podiam se beneficiar tanto os cristãos quanto os sunitas da Síria. Ambos mandaram exércitos ao Egito, em 1164 e novamente em 1167. O rei Amalrico, de Jerusalém, lutou pessoalmente. As forças sírias eram comandadas por um general curdo, cujos ancestrais vinham das remotas montanhas ao norte da Síria, mas cuja família servia os governantes turcos da Síria. O general curdo trazia consigo seu sobrinho, um jovem conhecido então apenas por sua devoção, conversação charmosa e habilidade no pólo. Seu nome era Salah Al-Din Yusef ibn Ayyub; para os cavaleiros ocidentais, ele ficou famoso como Saladino.

A luta foi inconclusiva e chegou-se finalmente a um acordo de paz. O Egito pagaria um enorme tributo de 100 mil peças de ouro por ano a Amalrico, e francos e sírios deixariam o país, com exceção de uma guarnição franca que ficaria no Cairo. Os francos, sob pressão dos Hospitalários, que esperavam gordas presas, atacaram novamente o Egito em 1168, sem a cooperação dos Templários, que não queriam romper os termos do tratado anterior. Resistindo ferozmente, os egípcios pediram ajuda a Nur al-Din. Um exército sírio chegou logo, e as exaustas forças francas retiraram-se sem lutar. A tentativa franca falhara, e suas conseqüências seriam desastrosas para os cristãos. A campanha abortada alimentou conflitos em Jerusalém e exauriu o tesouro. Além disso, ao atrair os sírios para o Egito, daria aos muçulmanos a solidariedade que até então não existia.

Pouco depois da chegada do exército sírio ao Cairo, seus líderes viram-se envolvidos na tenebrosa política do país. Saladino prendeu o vizir, um oponente de Nur al-Din. Por ordem do cafifa fatímida, talvez com estímulo dos sírios, o vizir foi estrangulado e substituído pelo tio de Safadino - que morreu nove dias depois. Sucedeu-o o sobrinho, então com trinta anos de idade.

Saladino colocara-se numa posição muito ambígua. Por um lado, era um muçulmano sunita, servo de Nur al-Din. Contudo, aceitara o posto de vice-rei do califa fatímida do Egito, uma potência estrangeira e herética. O califa abássida de Bagdá deu a conhecer sua desaprovação. Nur al-Din confiscou as terras de Saladino na Síria, mas este apropriou-se de terras egípcias para financiar suas tropas.

Nos anos seguintes, Saladino apertou seu controle sobre o Egito e exterminou a guarda sudanesa leal aos fatímidas. Nur al-Din passou a pressionar para que Saladino suprimisse o califado xiita. O jovem vizir começou a colocar funcionários sunitas em postos-chave. Na morte do califa fatímida, em setembro de 1171, Saladino fez o nome do califa abássida ser pronunciado nas orações nas mesquitas. Temiam-se tumultos, mas os egípcios aceitaram sua transferência para o islã sunita sem um murmúrio. A posição de Saladino estava finalmente resolvida: governava o Egito como representante de Nur al-Din e sob a suserania espiritual do califa abássida. Em 1174, trouxe também o lêmen para a órbita desse califa, quando mandou seu irmão numa expedição bem-sucedida para conquistar aquela rica região mercantil.

A capitulação do Egito ao califa sunita significava inquietação para Outremer, pois as terras cristãs podiam agora ficar presas, como em uma pinça, entre o Egito e a Síria. O rei Amalrico tentou estimular o ciúme de Nur al-Din em relação ao jovem vice-rei. Tentou também uma aliança com os Assassinos, que, alarmados com a queda dos fatímidas, até sugeriram - certamente sem intenções de cumprir - que considerariam a hipótese de se converterem ao cristianismo. Mas os Templários mataram os enviados dos Assassinos, preferindo perder a aliança a manter o tributo. E a esperança de uma briga entre os dois grandes líderes muçulmanos evaporou-se em 1174. Em maio desse ano, Nur al-Din disse a um companheiro, nos pomares de Damasco: “Louvado seja Ele, o único a saber se nos encontraremos aqui no mês que vem”.

Após uma quinzena, morria de um ataque do coração.
O herdeiro do trono de Nur al-Din era menor. Saladino percebeu sua chance, declarou-se guardião do menino e marchou sobre Damasco, onde foi recebido com entusiasmo. Ele sabia que os francos dificilmente invadiriam o Egito enquanto estivesse longe, pois o rei Amalrico acabara de morrer de disenteria deixando a coroa para seu filho Balduíno, que tinha apenas treze anos e já era leproso. Assim Saladino, após algumas refregas com outros pretendentes, tornou-se senhor da Síria, com exceção de Alepo. Em 1175, o califa de Bagdá selou as conquistas de Saladino, confirmando-o como soberano do Egito e da Síria. A primeira ambição de Saladino era reunificar o reino de Nur al-Din e criar uma coalizão de estados muçulmanos sob seu controle. Assediou Alepo várias vezes e, por fim, em 1183, a cidade rendeu-se. Fez muitas campanhas em Mosul, ambicionando aquele fértil território, o que deixou o califa irado. Mas Saladino tinha também a paixão pela guerra santa e pela expulsão dos infiéis. Travou escaramuças freqüentes com os cristãos durante sua primeira década como soberano da Síria, embora fosse repelido com imensa coragem por Balduíno, o jovem rei leproso, até morrer, em 1185.

A estratégia de Saladino era usar a riqueza do Egito para conquistar a Síria, a riqueza da Síria para conquistar a Mesopotâmia e a riqueza da Mesopotâmia para conquistar a Palestina. Quando morreu, seu sucessor encontrou um tesouro vazio. Mas, enquanto viveu, seu esquema deu certo, pois, tal como Nur al-Din, Saladino fez da religião sua aliada. A riqueza do Egito foi usada não apenas para contratar soldados, mas para construir mesquitas e patrocinar colégios, de tal forma que
os muçulmanos de todos os lugares eram continuamente lembrados de seus deveres religiosos. Os grandes príncipes do islã que, em gerações anteriores, tinham lutado entre si, agora estavam obrigados a participar da jihad se quisessem manter a reputação. Essa era, pelo menos, a versão dos cronistas muçulmanos favoráveis a Saladino; outros murmuravam que as vitoriosas campanhas contra seus camaradas muçulmanos constituíam argumento poderoso para a obediência.

O curdo foi abençoado com uma sorte prodigiosa. Os Assassinos tentaram matá-lo duas vezes em vão. No primeiro atentado - durante um sítio a Alepo, no inverno de 1175 - alguns Assassinos penetraram no acampamento de Saladino, mas foram presos antes que pudessem agir. Em 1176, durante outra campanha no norte da Síria, Assassinos disfarçados de soldados tentaram matá-lo a facadas, mas não conseguiram furar sua armadura. Em outra ocasião, perturbado por pesadelos, Saladino acordou e achou uma adaga envenenada sobre o travesseiro - o aviso dos Assassinos de um ataque iminente. Mas, depois desse susto, Saladino fez aparentemente um acordo secreto com os Assassinos, e eles nunca mais o atormentaram.

Até Bizâncio fez o jogo de Saladino. Em 1176, o imperador Manuel Comneno, ao invadir a Anatólia para tratar de alguns seljúcidas rebeldes, caiu numa emboscada e sofreu uma derrota tão mutiladora quanto a de Manzikert. Não haveria mais proteção bizantina para Outremer.

Não demorou muito e as terras francas estavam mais necessitadas ainda de proteção, graças às façanhas de Reinaldo de Châtillon, um nobre agressivo e ambicioso de Outremer, instigador de muitos ataques audaciosos aos muçulmanos e suas riquezas. Seu golpe mais atrevido aconteceu em 1182, quando mandou uma esquadra de galeras para o mar Vermelho, com ordens para navegar para o sul, interceptar o comércio dos peregrinos islâmicos e, se possível, desembarcar na Arábia. Até Meca, onde estava o túmulo do Pro-feta, poderia ser visada. Os atacantes fizeram grandes estragos antes de serem destruídos; Reinaldo não ganhou nada, mas os muçulmanos ficaram horrorizados. O próprio Saladino chamou o ataque de "uma monstruosidade sem paralelo na história do islã". Em 1183, Saladino invadiu a Palestina para se vingar. Mas não chegou a haver confronto, e fez-se uma trégua.

Como era de se esperar, Reinaldo rompeu a trégua assim que ouviu falar de uma rica caravana de mercadores desarmados que passava perto de suas terras, na margem oriental do Jordão. E recusou-se a devolver os despojos. Saladino, irado, invadiu a Palestina em 1187 com os exércitos unidos do islã, "pronto para levar a morte rubra aos inimigos de olhos azuis", nas palavras do cronista e criado de Saladino, Imad al-Din. Em Zippori, quase quarenta quilômetros a oeste do mar da Galiléia, os francos reuniram todas suas forças para deter Saladino: nobres de Antióquia, Trípoli e Jerusalém, Templários e Hospitalários - 1200 cavaleiros e uma massa de infantaria. Levavam com eles um auxílio em forma de fragmento de madeira, supostamente uma lasca da Cruz em que Cristo morrera. Em julho de 1187, Saladino atacou Tiberíades, junto ao mar da Galiléia, onde a esposa de Raimundo de Trípoli, um dos principais nobres de Jerusalém, defendeu o castelo, pois o marido estava em Zippori. Para romper o cerco, os cristãos teriam de atravessar os secos e tórridos morros da Galiléia. Com sorte, poderiam conseguir isso com um dia de marcha.

Raimundo implorou para que não o fizessem: mesmo que o cerco de Tiberíades tivesse êxito, seu castelo poderia ser reconstruído, a esposa e o filho poderiam ser resgatados por dinheiro, enquanto, se o exército fosse destruído ao defender Tiberíades, o próprio reino estaria ameaçado. Mas Reinaldo e os Templários queriam ação. Guy de Lusignan, o recém-coroado rei de Jerusalém, já fora chamado de covarde por ficar na defensiva em outra ocasião; além disso, era um suserano e não abandonaria um vassalo em perigo, ainda que o vassalo protestasse. Conclusão: o rei ordenou que o exército marchasse para Tiberíades.
Jamais chegaram lá. O sol abateu-se sobre os cristãos, as tropas de Saladino fustigaram a retaguarda e, ao anoitecer, estavam longe do objetivo. Até mesmo os Templários não conseguiam marchar mais. Não havia água, nem sono à noite. Na manhã seguinte, o exército cristão foi empurrado para um morro rochoso encimado por dois picos chamados de Cornos de Hattin. Os muçulmanos incendiaram os arbustos secos do morro e atacaram de todos os lados. Raimundo de Trípoli comandou uma investida desesperada que abriu um claro nos regimentos de Saladino e escapou. Mas o grosso do exército cambaleou para a derrota, exausto dentro de suas armaduras. Os muçulmanos capturaram a lasca da Cruz Verdadeira. O rei Guy foi um dos últimos a se render. Segundo uma testemunha árabe: "O terreno estava coberto de prisioneiros e cadáveres, descobertos pela poeira que baixava, tornando clara a vitória. Os mortos estavam espalhados por montanhas e vales, jazendo imóveis, lacerados e desjuntados, com cabeças abertas, gargantas cortadas, espinhas espatifadas, ossos quebrados, túnicas rasgadas, faces sem vida, ferimentos pingando, peles esfoladas (...) como pedras entre pedras, uma lição para os sensatos”.

Saladino mandou que trouxessem Guy de Lusignan e Reinaldo de Châtillon a sua tenda. Pediu a Reinaldo que justificasse seus abusos. A resposta revelou Reinaldo mais arrogante do que nunca, igualando sua posição de mero senhor com a de um rei. "Mas é assim que o reis sempre agiram", respondeu; "só fiz o que sempre se fez". Saladino enfureceu-se com a provocação de Reinaldo. Ofereceu ao rei Guy uma taça de água gelada - e com ela, pelas regras da hospitalidade oriental, a vida de Guy. O rei bebeu e passou a taça para Reinaldo. "Não fui eu que lhe dei de beber”, disse Saladino, e matou Reinaldo no ato.

Depois de tal vitória, não poderia haver muita resistência. O rei Guy foi aprisionado. Raimundo de Trípoli morreu - inconsolável, disseram alguns, com a vergonha da derrota. Os grandes castelos da fronteira foram tomados de assalto ou definharam. No litoral, Jafa, Acre, Ascalão e Beirute logo se submeteram; em geral, Saladino ofereceu termos muito misericordiosos. Jerusalém foi assediada. O comandante da defesa armou cavaleiros todos os rapazes de família nobre com dezesseis anos ou mais; eles lutaram bravamente, mas sem esperança. Saladino aceitou uma rendição pacífica. Destruiu as igrejas com suas esculturas e pinturas idólatras, mas poupou o Santo Sepulcro. O grande púlpito que Nur al-Din mandara preparar foi trazido de Damasco para a mesquita de al-Aqsa.

A maioria dos francos de Jerusalém comprou sua liberdade, mas alguns não tinham condições de pagar o resgate. O historiador Imad al-Din exultou: "Mulheres e crianças juntos chegavam a 8 mil e foram rapidamente divididos entre nós, trazendo um sorriso às faces muçulmanas diante de suas lamentações. Quantas mulheres bem guardadas foram profanadas, e outras preciosas usadas para o trabalho duro, e coisinhas lindas postas à prova, e virgens desonradas, e mulheres orgulhosas defloradas, e lábios vermelhos de mulheres graciosas beijados, e felizes obrigadas a chorar, quando Jerusalém foi purificada da imundície dos diabólicos francos”. Os cristãos nativos fizeram sua paz com o conquistador, como estavam acostumados a fazer, e as cidades e vilas pagaram tributos aos seus novos senhores.

Mas alguns lugares permaneceram impuros. Uma cidade do reino de Jerusalém foi salva por Conrado de Montferrat, um nobre italiano, que chegou por acaso ao porto de Acre com uma companhia de cavaleiros, logo depois que os muçulmanos tinham tomado posse dela. Não ouvira nada sobre a catástrofe, mas sentiu que algo estava errado, fez-se ao mar de novo e foi para a quase inexpugnável Tiro, onde entrou pouco antes da chegada de Saladino. O sítio que se seguiu foi curto e amargo. Mesmo quando Saladino ameaçou executar o pai de Conrado, seu cativo desde Hattin, o italiano recusou-se a se render. No início de 1188, Saladino desistiu. Talvez tenha pensado que poderia tomar Tiro mais tarde, junto com os estados de Trípoli e Antióquia; deveria saber que os refugiados de Jerusalém iriam para lá. Mas é improvável que Saladino se desse conta do que aconteceria quando a Europa soubesse da queda de Jerusalém.

"Quem dará água para minha cabeça e uma fonte de lágrimas aos meus olhos, para que eu possa chorar dia e noite pelo massacre de meu povo?", clamou o papa Gregório VIII. Ele convocou a Terceira Cruzada com uma bula que relacionava o desastre na Palestina com os pecados dos cristãos e prometeu remissão para todos os que aceitassem participar da nova Cruzada. As galeras da Sicília normanda levaram um pingo de reforços para Outremer em 1188, mas o ano seguinte assistiu a uma enchente do norte, o início da Terceira Cruzada. Navios zarparam de Bretanha, França, Flandres, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca; não se tratava de uma frota coordenada, mas de pequenas esquadras de voluntários, cavaleiros e muitos arqueiros e lanceiros profissionais. Na Palestina encontraram uma nova crise.

O rei Guy fora libertado, possivelmente porque Saladino queria que os francos tivessem um comandante bravo e incompetente. Em agosto de 1189, Guy agiu com coragem de lunático: com uns poucos cavaleiros, partiu de Trípoli para reconquistar seu reino, a começar pelo porto de Acre. A guarnição muçulmana de lá era forte e Saladino podia eventualmente reunir uma força bem maior para defender a cidade, mas o lance de Guy foi tão inesperado que a resposta do curdo demorou. Antes que o exército de apoio estivesse a postos, os primeiros navios da Europa estavam desembarcando nas praias ao lado de Acre. Nas batalhas que se seguiram, os turcos descobriram que era perigoso se aproximar da compacta infantaria cristã. Quando o inverno chegou, os cristãos estavam firmemente entrincheirados em torno de Acre, cercando a cidade e eles mesmos cercados.

Da Europa, chegaram notícias de reforços iminentes. O imperador germânico Frederico Barbarossa, com seus 67 anos de idade, avançava para o leste com um exército; Filipe e Ricardo, os briguentos reis de França e Inglaterra, tinham posto de lado seu velho conflito e viriam pelo mar com forças imensas. A notícia da aproximação de Ricardo, em especial, deve ter elevado o moral dos cristãos cercados. Homem tremendamente forte, ele era conhecido por participar pessoalmente das batalhas, provocando grande destruição sempre que manejava sua longa espada ou uma acha-d'armas.

Dessa vez, os exércitos cristãos não teriam pouco dinheiro. As Cruzadas sempre foram caras, mas o idealismo da Primeira transcendera os problemas práticos. No final do século, muitas famílias européias já tinham fornecido três ou quatro gerações de cruzados, e seus cofres estavam vazios. Papas e monarcas, reconhecendo o problema, começaram a procurar meios de subsidiar os cruzados. Seus esquemas deram frutos a tempo da Terceira Cruzada. Ricardo e Filipe cobraram impostos colossais para pagar pela Cruzada; o “dízimo de Saladino” - dez por cento de todas as propriedades móveis dos que não iam em cruzada - foi coletado em ambos os países e suplementado com outros tributos.

Barbarossa teve de abrir caminho pelo território bizantino, pois Bizâncio, julgando Saladino invencível, aliara-se a ele. Ele atravessou a Anatólia, liquidando seljúcidas aos milhares, e chegou em segurança a território cristão. Então, em junho de 1190, ocorreu o desastre: em sua exuberância, o imperador tentou atravessar a nado um rio largo e se afogou, talvez por causa de um ataque do coração. Sem seu líder, os germânicos se desintegraram; alguns cambalearam até Antióquia, "parecendo cadáveres desenterrados", escreveu um cronista árabe. Para ajuda verdadeira, os cristãos dependeriam de França e Inglaterra. Mas Ricardo e Filipe só puderam partir em julho de 1190. Enquanto isso, o duplo cerco continuava em Acre.

Sua duração não tinha precedentes: 683 dias do início ao fim, com os exércitos sempre em contato. Outremer estava lutando por sua própria vida, com todos os meios de que dispunha. Observadores muçulmanos registraram com espanto mulheres francas que lutavam montadas, com armaduras, e uma dama de manto verde cujas flechas eram temidas pelos defensores da cidade.

No verão de 1191, os reis de França e Inglaterra desembarcaram. Ricardo fizera uma breve parada para tomar Chipre de seu recém-instalado governante grego, um rebelde contra Bizâncio. Aproveitou para melhorar suas finanças, cobrando um tributo de cinqüenta por cento dos cipriotas e depois vendendo a ilha para os Templários. Apesar da querela sobre quem deveria ser o rei da Jerusalém restaurada, a unidade cristã durou o suficiente para realizar uma série de assaltos demolidores a Acre, que se rendeu em julho; o exército de Saladino retirou-se.

Assim que pôde, Filipe voltou para a França, de onde atacou os territórios de Ricardo. Este, sozinho no comando, marchou de Acre para Jafa, na linha mais favorável de acesso a Jerusalém. Houve escaramuças com a cavalaria turca em todo o trajeto, e, em Arsuf, a grande hoste de Saladino esperava emboscada. Mas Ricardo Coração de Leão não era apenas o mais forte de seu exército: era também um general cuidadoso, que dispunha suas tropas com grande habilidade. As linhas de lanceiros protegiam os besteiros, cujo alcance superava o dos arqueiros turcos. Quando a emboscada se revelou e todos os muçulmanos entraram em batalha, a retaguarda atacou cedo demais, mas Ricardo assumiu seu comando e ganhou a batalha. Após Arsuf, nenhum exército muçulmano ousou enfrentar Ricardo novamente.

Durante a campanha, Saladino comportou-se de forma extremamente delicada em relação ao inimigo. Quando Ricardo ficou sem cavalo, em Jafa, Saladino enviou-lhe uma nova montaria, com seus cumprimentos. Quando, mais tarde, Ricardo ficou doente, Saladino mandou gelo para refrescar-lhe a testa. Essas cortesias eram naturais para Saladino, um homem que, apesar de todo o cruel oportunismo, podia demonstrar grande generosidade. Os muçulmanos lembrariam dele por sua profunda fé no islã; para os cristãos, tornou-se legendário pelo cavalheirismo.

A cortesia, porém, não ia ao ponto de entregar Jerusalém. Saladino recuou para os morros da Judéia, destruindo o campo, bloqueando as fontes, fabricando um deserto artificial. Os devotados peregrinos da Primeira Cruzada talvez tivessem avançado de qualquer maneira, mas Ricardo entendia de logística e sabia que Jerusalém não poderia ser mantida pelos cristãos, mesmo que fosse retomada. Além disso, admirava o inimigo e sabia do custo terrível da guerra. "Não tendes mais direito de mandar todos os muçulmanos para a morte", escreveu ele a Saladino, "do que eu o de mandar todos os cristãos para o mesmo destino”.

Havia várias saídas para o impasse. Ricardo chegou a fazer a espantosa sugestão de casar sua irmã com o irmão de Saladino, que reinaria sobre toda a Palestina, cristã e muçulmana. Por fim, no outono de 1192, foi assinado um tratado. Os francos foram deixados em paz em suas cidades costeiras, a Cruz Verdadeira foi devolvida a eles e os cristãos peregrinos ganharam acesso livre a Jerusalém. Saladino morreu de febre cinco meses depois. Seria lembrado por seus oponentes como um soldado galante, devoto e generoso; sua história e personalidade tornaram-se matéria de canções e encenações. Um século após sua morte, Dante Alighieri introduziu Saladino na Divina Comédia. Nessa imaginária jornada pelos sete círculos do Inferno e, depois, pela montanha do Purgatório até o Céu, Dante colocou Saladino no Inferno, local onde estavam todos os não-cristãos, mas não em suas profundezas abrasadoras, como se esperaria para o pior inimigo da cristandade. Em vez disso, Dante deixou-o descansar eternamente na paz do Primeiro Círculo do Inferno, lugar reservado para os homens bons que haviam tido a desventura de viver antes do nascimento de Cristo.

Para os cristãos, o tratado de 1192 foi muito mais do que parecera possível após a derrota nos Cornos de Hattin, mas não era o que desejavam. Tinham partido para ganhar a redenção de suas almas através do sofrimento pela cidade onde Cristo sofrera por eles, não para uma paz de compromisso.

Em 1197, o filho de Barbarossa, imperador Henrique VI, preparou um epílogo para a Terceira Cruzada; com a experiência adquirida, a força germânica resolveu ir por mar. Mas Henrique morreu de repente e, novamente sem líder, os alemães apenas conseguiram recapturar Beirute.

Então, em 1198, pregou-se uma Quarta Cruzada em toda a Europa, convocando os cavaleiros cristãos para lutar novamente na Palestina. Para evitar os ataques dos turcos na Anatólia, os cavaleiros planejaram ir por mar até o Egito. Fizeram contatos com os venezianos para conseguir transporte, mas superestimaram o número de cruzados. Os venezianos construíram uma grande frota, cujo custo seria repartido entre os cruzados que embarcassem. Quando só um terço do número estimado deles apareceu em Veneza em 1202, os venezianos exigiram a soma prometida. Estavam dispostos a adiar o pagamento mas com uma condição escandalosa. A cidade cristã de Zara, na costa da Dalmácia, estivera outrora sob o domínio de Veneza, porém transferira sua lealdade para a Hungria. Os venezianos exigiam que os cruzados os ajudassem a recuperar a cidade desleal. Apesar da indignação de muitos cavaleiros, Zara foi ocupada em 1202. O papa Inocêncio III excomungou prontamente todos os envolvidos; quando as circunstâncias lhe foram explicadas, levantou a condenação sobre os cruzados, mantendo-a apenas sobre os venezianos.

As circunstâncias conspiravam agora para desviar a Cruzada para Bizâncio. Os venezianos tinham boas relações comerciais com o Egito e não desejavam participar de um ataque àquele país; e também cultivavam uma profunda aversão aos bizantinos, que tinham atrapalhado e até mesmo matado mercadores venezianos. O líder da Cruzada, Bonifácio de Montferrat, era amigo do genro alemão de um imperador bizantino incompetente, que fora deposto seis anos antes.

Chegaram rumores ao papa Inocêncio de que Bonifácio e os venezianos estavam gestando um plano para apoiar Aleixo, filho do imperador bizantino deposto, numa tentativa de tomar o trono. Em troca do apoio armado, Aleixo prometia aos cruzados os fundos que precisavam para pagar os venezianos. Além de querer o pagamento, Veneza certamente esperava lucros. Inocêncio proibiu um ataque a Constantinopla, mas sua carta chegou após a frota zarpar de Zara. Mesmo que os cruzados tivessem recebido a mensagem, é possível que muitos não lhe dessem atenção: não tinham esquecido a recepção hostil dada por Bizâncio a Barbarossa.
Em 1203, franceses e venezianos chegaram a Constantinopla e instalaram Aleixo no trono. A pedido do imperador, acamparam fora das muralhas da cidade, para garantir a segurança dele. Essa presença de nada adiantou: Aleixo foi morto por um patriota bizantino que tomou o poder para si. Os cruzados descobriram-se numa armadilha: os venezianos continuavam exigindo o pagamento, e a única fonte de fundos imaginável era a coruscante cidade de Constantinopla, protegida por muralhas maciças que por oito séculos resistiram aos ataques de búlgaros, russos e árabes. Os cruzados tomaram o único caminho que Ihes parecia aberto e assaltaram a cidade em 12 de abril de 1204. As defesas de Constantinopla mostraram-se menos fortes por mar do que por terra, e a metrópole que resistira a tantos exércitos poderosos tombou com facilidade para a frota cristã.

Cruzados e venezianos saquearam e incendiaram durante três dias. Constantino enriquecera sua capital com as obras-primas do mundo antigo: estátuas de Hércules, Juno, Atena e Helena de Tróia; os cruzados espatifaram os mármores e derreteram os bronzes. Nove séculos de devoção tinham enchido as igrejas e catedrais com jóias e metais preciosos; os cruzados levaram mulas de carga aos altares para carregar o saque. Os venezianos selecionaram alguns itens especiais para adornar a cidade deles, inclusive quatro soberbos cavalos de bronze dourado, feitos por volta do século III a.C. Esses corcéis, que outrora talvez puxassem um carro do sol pagão, foram colocados em cima do portal da basílica de São Marcos.

Quando o saque terminou, os cruzados ergueram seu próprio império sobre as ruínas de Bizâncio: um império católico na religião, francês na língua e italiano na política comercial. O domínio pessoal do imperador, Balduíno de Flandres, seria a Trácia e algumas ilhas do Egeu; Bonifácio de Montferrat recebeu boa parte da Grécia continental, que mantinha como vassalo de Balduíno. Os venezianos ganharam os postos comerciais que desejavam no litoral ocidental da Grécia e certas ilhas estratégicas. Inocêncio 111, embora consternado com a teimosia da Quarta Cruzada, ficou contente por estender sua autoridade espiritual sobre Constantinopla. Por fim, o sonho de unir as cristandades oriental e ocidental parecia próximo.

Mas o império católico de Bizâncio revelou-se frágil. Os bizantinos retomaram sua capital e depuseram os imperadores francos depois de 57 anos, embora senhores franceses tenham continuado a mandar na Grécia até o século XV. Longe de desaparecer, o cisma entre as igrejas oriental e ocidental só faria crescer. A igreja ortodoxa jamais poderia perdoar o ataque a sua capital e a seus lugares sagrados.

Tendo sido tão saqueada e desmembrada, Bizâncio jamais recuperaria seu poderio. Durante séculos, o império servira de proteção à Europa cristã contra os muçulmanos. Agora, os anos de Bizâncio nesse papel estavam contados. Em dois séculos, Constantinopla cairia para uma nova dinastia turca. Inadvertidamente, os cruzados, inimigos jurados dos muçulmanos, estavam, com a destruição que causaram em Bizâncio, abrindo as portas para as incursões turcas nos Balcãs.

Do ponto de vista da Europa ocidental, porém, a Quarta Cruzada trouxe muitos benefícios. Os mercadores italianos podiam agora negociar diretamente com as rotas das especiarias e da seda, através do mar Negro. Na metade do século XIII, os portos desse mar interior já eram mais importantes que os da Síria. Até o colapso rápido do Império Bizantino foi lucrativo para aqueles mercadores. Veneza beneficiou-se muito com suas cidades mercantis e tornou-se rica e poderosa. O influxo de um butim requintado e de artistas refugiados de Bizâncio trouxe novos níveis de sofisticação às artes do Ocidente.

Entrementes, cavaleiros valentes continuavam a prestar juramentos e partir para o leste a fim de lutar contra os muçulmanos; com efeito, mais gente iria em cruzada a Jerusalém no século XIII do que no século XII. Mas jamais se repetiriam as vitórias da Primeira Cruzada. A desunião continuaria a perseguir os cruzados, enquanto os lucros crescentes do comércio internacional ajudariam os muçulmanos.

O remanescente do reino de Jerusalém sobreviveria um século mais; o neto de Barbarossa, Frederico 11, até reconquistaria a Cidade Santa por algum tempo, pela diplomacia e não pela força, aproveitando-se da discórdia entre os sucessores de Saladino. Os descendentes de Guy de Lusignan reinariam em Chipre até 1489, e os venezianos ficariam com a ilha por mais um século. Mas a tentativa de estabelecer um estado católico poderoso no Levante falhara.

No Oriente, o islã se fortalecera. Enquanto para os líderes sírios os eventos na Mesopotâmia e no Egito eram mais importantes que a ameaça cristã, o apelo à jihad unira a gente comum. A presença cristã ajudou a reunificar uma região fragmentada. No final do século XIII, as terras sob o domínio frágil de Saladino estariam sob o controle centralizado do sultanato mameluco do Egito. A Europa cristã exercitava seus músculos, mas o mundo islâmico descobria também um novo vigor: o século das Cruzadas viu o islã marchar vitoriosamente para o leste.

domingo, 27 de abril de 2008

quarta-feira, 26 de março de 2008

CAVALEIROS TEMPLÁRIOS


DÉBORA F. LERRER


Com o objetivo de proteger as rotas de peregrinação, os Cavaleiros Templários construíram, em menos de 200 anos, um império econômico sem igual na Idade Média. Os anos de glória e a queda violenta e injusta desta ordem de monges guerreiros deram vazão ao surgimento de várias lendas e histórias sobre esses cavaleiros, que foram a vanguarda da espiritualidade cristã da época
A ordem dos monges guerreiros, que se tornou uma das mais poderosas e controversas organizações na história da Europa medieval, era conhecida com uma variedade de nomes: Pobres Soldados de Cristo e do Templo de Salomão, Milícia de Cristo ou, mais comumente, Cavaleiro Templários. Em 200 anos, a partir de seu objetivo de proteger as rotas de peregrinação, eles construíram um império econômico que pode ser considerado a primeira multinacional européia. Devendo obediência apenas ao papa, os Templários desenvolveram arrojadas técnicas de construção, trouxeram tecnologias dos muçulmanos e se tornaram mais ricos do que vários reinos, emprestando dinheiro para príncipes, bispos e reis. Famosos por sua bravura nas batalhas travadas nas Cruzadas, foram destruídos em menos de uma década por um rei que, não por acaso, era altamente endividado com a Ordem. Para o historiador Ricardo da Costa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, os templários podem ser considerados os fundamentalistas da época. "Eles estavam na vanguarda da espiritualidade cristã. Ser um padre e ao mesmo tempo combater o infiel era considerado o máximo para a época".

A fundação da ordem

Em 1118, os cavaleiros Hugh de Payen e André de Montbard (tio do abade Bernard de Clairvaux, famoso pregador da época), junto com sete companheiros, se apresentaram para o Rei Balduíno I de Jerusalém, anunciando que tinham a intenção de fundar uma ordem de monges guerreiros e, na medida em que sua força permitisse, manteriam seguras as estradas e caminhos com especial atenção para a proteção dos peregrinos. A nova ordem fez votos de pobreza pessoal, de obediência e de castidade e jurou manter todo seu patrimônio em comum.
Os primeiros Templários passaram nove anos na Terra Santa, alojados em uma parte do palácio que foi cedida a eles pelo rei, exatamente em cima dos estábulos do que outrora foi o antigo Templo de Salomão. Daí veio o nome de cavaleiros do Templo, ou Templários. Para Tim Wallace-Murphy, responsável pela página da Rede Européia de Pesquisa da Herança Templária (ETHRN), a principal razão para a fundação da Ordem, ou seja, a proteção das rotas de peregrinação, não se sustenta - se analisados os primeiros anos da sua existência. Seria fisicamente impossível que nove cavaleiros de meia-idade protegessem as perigosas rotas entre Jaffa e Jerusalém de todos os bandidos e saqueadores infiéis, que acreditavam que os peregrinos que lhes garantiam roubos tão fáceis eram um presente de Deus. Já os indícios existentes das ações desses cavaleiros na região fazem essa hipótese ser ainda mais improvável, pois ao invés de patrulharem as rotas da Terra Santa para proteger peregrinos, eles passaram nove anos na tarefa perigosa e exigente de re-abrir uma série de túneis localizados sob seus quarteirões no Templo do Monte.
Os túneis explorados pelos Templários foram re-escavados em 1867, por um oficial da coroa britânica. Ele não encontrou o tesouro escondido do Templo de Jerusalém, mas pedaços de uma lança e de uma espada, esporas e uma pequena cruz templária, hoje guardados na Escócia. O que os Templários estariam procurando e como eles sabiam exatamente onde escavar?
No exterior da Catedral de Chartres, na porta do norte, está esculpida uma imagem no pilar que nos dá uma indicação do objeto procurado pelos Templários: a Arca da Aliança, representada sendo transportada em um veículo de rodas. Várias lendas contavam que a Arca ficou escondida por muito tempo embaixo da cripta da Catedral de Chartres. As mesmas lendas alegam que os Templários teriam encontrado muitos outros artefatos sagrados do velho templo judeu durante suas investigações, bem como uma considerável quantidade de documentação.

Primeira multinacional européia

A medida em que a Ordem crescia em prestígio, suas finanças também aumentavam vertiginosamente. Parte porque membros das famílias mais importantes da Europa se integravam a suas hostes, mas também porque a aristocracia européia acreditava que ao doar suas propriedades a eles, garantiam de antemão a salvação de sua alma. Rapidamente a Ordem tornou-se dona de terras de vários tamanhos espalhadas por todas as regiões européias da Dinamarca à Escócia, ao Norte, até a França, Itália e Espanha, no Sul. "O Rei de Aragão chegou a doar todo seu reino a eles", conta o historiador Costa.
Os interesses comerciais dos Templários eram impressionantes e variados, e suas atividades incluíam administração de fazendas, vinhas, minas e extração de pedras. Como resultado de seu interesse em proteger peregrinos e a manutenção de comunicações com suas bases operativas na Terra Santa, os templários operavam uma frota muito bem organizada que excedia a de qualquer reino daquele tempo. Em menos de 50 anos de sua fundação, os Cavaleiros Templários se tornaram uma força comercial com poder sem igual na Europa. Em cem anos, já haviam desenvolvido um precursor medieval dos conglomerados multinacionais, com interesses em todas as formas de atividades comerciais daquele tempo. Eram de longe muito mais ricos do que qualquer reino europeu.
Entre os principais itens de suas atividades comerciais estavam aquelas que hoje seriam definidas como de "tecnologia e idéias". A rede de comunicação dos Templários era a principal rota pela qual conhecimentos de astronomia, matemática, medicina fitoterápica e técnicas de cura faziam seu caminho da Terra Santa para a Europa. Entre esses avanços tecnológicos trazidos pelos cavaleiros estavam a respiração boca-a-boca e o telescópio.
Os Templários também eram grandes construtores. Em seus próprios Estados eles construíram e sustentaram castelos fortificados, fazendas, celeiros e moinhos, bem como alojamentos, estábulos e oficinas. Diversas ruínas particularmente no Sul da Europa e na Palestina demonstram a razão pela qual eles eram particularmente famosos como engenheiros, pois seus castelos foram construídos em locais estratégicos para defesa que colocavam enormes desafios e dificuldades de construção. As clássicas igrejas templárias, supostamente inspiradas no design da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, influenciou a construção de muitas catedrais européias, especialmente a Catedral de Chartres, na França.

Monges banqueiros

Os templários souberam usar a imensa riqueza que foram acumulando com muita habilidade. Além de investir em terra e agricultura e em indústrias de base para a expansão de construções na Europa, eles adotaram um conceito de transferência financeira, aprendido com seus oponentes muçulmanos, para desenvolver os antepassados dos atuais cheques bancários e do cartão de crédito. Segundo Ricardo da Costa, eles são considerados "um dos grupos fundadores de um sistema bancário internacional".
A carta de crédito templário foi desenvolvida a partir das necessidades financeiras surgidas pelo equivalente medieval de "pacotes turísticos" - as peregrinações religiosas e as cruzadas. Para Roma, Jerusalém ou Santiago Compostela, uma peregrinação era uma longa, difícil e cara aventura para o peregrino - e uma fonte de imenso lucro para a Igreja, estalajadeiros, barqueiros, etc. Para evitar assaltos, extorsões e acidentes imprevistos, o peregrino tinha que ser muito atento e cuidadoso ao carregar grandes somas de dinheiro enquanto viajava. Para resolver esse problema, eles simplesmente procuravam o mestre do comando Templário da região e depositavam fundos suficientes para cobrir o custo estimado da jornada. Em retorno ao depósito, o Templário lhe daria um cupom codificado como um recibo e como meio de compra. A cada parada, ele apresentava seu cupom ao representante Templário local que lhe daria a soma necessária, recodificaria o cupom e devolveria a seu proprietário.
A fortuna dos Templários e seus serviços financeiros eram não só procuradas por mercadores e donos de terra da Europa feudal. Eles emprestavam para bispos, príncipes, reis e imperadores financiarem guerras, construções e cruzadas. Embora Ricardo da Costa considere um exagero, para Tim Wallace-Murphy a segurança financeira e viagens seguras a longa distâncias garantidas pelos Templários foi um fator importante no processo de acumulação de capital e no surgimento da classe de mercadores e de uma burguesia urbana. Para ele, a eficiência dos Templários foi o que fomentou essa mudança rápida no cenário europeu medieval. Mas tanta opulência despertou a cobiça de gente muito poderosa e os Templários foram banidos tão rapidamente como surgiram.
Queda na Terra Santa e na EuropaOs Templários perderam Jerusalém para Saladin em 1187, mas se reinstalaram novamente em seu quartel-general em 1228, quando Frederick II conseguiu retomar controle de Jerusalém. Pouco tempo depois, em 1244, a ordem foi novamente expulsa de lá, quando a cidade caiu sob domínio das forças turcas.Ao perder suas bases em Jerusalém, a Ordem se mudou para o Porto de Acre, que havia sido capturado por Ricardo Coração de Leão. Ocupando uma parte substancial de Acre, o castelo dos Templários com suas numerosa torres e paredes altas era o local mais fortificado da cidade. Eles mantiveram essa fortaleza até 1291, quando a cidade caiu definitivamente na mão dos muçulmanos.Após a queda de Acre, os Templários mudaram seu quartel-general para a Ilha de Chipre, onde já tinham uma base importante. De lá, os cavaleiros tentavam minar o domínio muçulmano na Terra Santa. Entretanto, o domínio dos Templários na Ilha era extremamente severo e os cipriotas planejaram um levante já em 1292. Embora tenham reprimido a conspiração, os Templários perceberam que era muito difícil controlar a ilha à força e decidiram retornar à Europa.
Muito pouco tempo depois de perder seus domínios no Oriente Médio, os Templários se depararam com um inimigo infinitamente mais ardiloso que conseguiu destruir a Ordem: o rei Felipe IV, o Belo, da França (1268-1314). Um dos monarcas mais endividados com os Templários, Felipe também tinha ressentimentos, pois sua candidatura para ser cavaleiro da Ordem fora recusada. Além de precisar cancelar seus enormes débitos, ele enxergou a oportunidade de se apropriar das riquezas dos Templários se conseguisse destruí-los.
Por outro lado, sendo um rei devotado à estruturação do Estado nacional francês, a existência de uma ordem tão poderosa, com tantos territórios e propriedades dentro de seu reino era visto como um obstáculo. "Ele não teve escrúpulos ao colocar os direitos do Estado acima de qualquer coisa", diz Costa.As aspirações de Felipe também foram favorecidas pela morte misteriosa de dois papas (curiosamente inimigos do rei da França) e a eleição de um francês, Clement V, uma pessoa débil e facilmente manejável que foi altamente pressionada por Felipe e acabou por acatar todas as provas apresentadas contra os cavaleiros Templários, obtidas provavelmente mediante tortura.Razões plausíveis não foram difíceis de encontrar em uma era dominada pela Inquisição. Cavaleiros expulsos da Ordem foram facilmente subornados e acusaram seus antigos companheiros de heresia, ritos blasfemos, sodomia e culto a um diabo em forma de um gato preto chamado Bafomet. De acordo com Costa, só uma acusação contra eles tinha fundo de verdade: a de que ao invés de combaterem os muçulmanos, eles estavam estabelecendo relações comerciais com eles. Segundo o historiador, vários relatos de muçulmanos da época, como os do príncipe Usama, atestam a tolerância religiosa dos Templários. O rei francês maquinou sua cilada em segredo e em 13 de Outubro de 1307, Jacques de Molay, Grande Mestre dos Templários, e 60 dos mais importantes cavaleiros foram presos em Paris. Simultaneamente milhares de cavaleiros foram presos em todo território francês. Sob as ordens do rei, o alto comando Templário foi torturado por vários anos, confessando o que seus acusadores queriam escutar e oferecendo a base jurídica para a supressão da Ordem em 1312.Sete anos depois, em 14 de Março de 1314, após renegar todas as confissões obtidas por tortura, Jacques de Molay foi queimado vivo em público. Enquanto queimava em agonia, Molay convidou Felipe e o Papa Clement a juntarem-se a ele perante o julgamento de Deus em um ano. Ambos morreram em menos de um ano da morte de Molay, ajudando a reforçar os mitos em torno dos Templários.Oficialmente, a Igreja considera que os Templários foram suprimidos completamente após esse processo. Entretanto, reações diante da supressão dos Templários variaram de país para país. Os cavaleiros alemães da Ordem se juntaram aos Cavaleiros Hospitaleiros e aos Cavaleiros Teutônicos que receberam os bens dos Templários nesse país. Em Portugal, os Templários não foram suprimidos, simplesmente mudaram seu nome para Cavaleiros de Cristo e continuaram tendo apoio real. Muitos anos depois, o navegador Vasco da Gama tornou-se um de seus membros, e o Príncipe Henrique, o Navegador, era Grande Mestre da Ordem rebatizada. As cruzes que ornamentavam as caravelas de Pedro Álvares Cabral eram templares. Na Espanha, muitos ex-Templários foram estimulados a se juntar a outras Ordens militares, para ajudar na luta contra o domínio mouro na região.De acordo com muitos membros da Ordem Militar Soberana do Templo de Jerusalém (SMOTJ), os Templários não terminaram em 1314. Um documento chamado "Larmenius Charte" mostra uma lista de Grandes Mestres que se sucederam no comando da Ordem até 1838. É provável é que a influência dos Templários tenha de fato continuado na maior parte da Europa, mas não mais como a ordem original que estava vinculada diretamente ao papa. Hoje existem até autores como Alan Butler e Stephen Dafoe que acreditam que os Templários foram para onde hoje é a Suíça, ajudando os camponeses locais a formar a Confederação Helvética, independente dos grandes reinos que haviam em torno. Butler e Dafoe também acreditam que a conhecida habilidade financeira dos suíços também teria conexão com seus supostos ancestrais Templários.Oficialmente, a Igreja reconhece que somente após a 2º Guerra Mundial a Ordem voltou a surgir em forma cristã supraconfessional (acima de qualquer confissão) com o objetivo de contrastar com o paganismo moderno.De qualquer modo, há vários grupos, muitos deles maçons, que reivindicam para si uma conexão com os Templários. Ricardo da Costa considera isso uma apropriação indébita, pois a Igreja, da qual os Templários eram militantes fervorosos sempre combateu a maçonaria. Descendentes ou não dos bravos cavaleiros medievais, eles mantêm aceso o mito dos Templários.